São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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FLORESTAN ATACA O CONSENSO

que deveria haver democracia para negro? Era fantasia. Quando houver cidadania universalizada e a democracia abranger todos de uma forma mais ou menos homogênea, aí sim se poderá falar de uma democracia racial. Caso contrário, escondemos a realidade atrás de um véu.
Folha - Como foi a passagem deste trabalho para "A Integração do Negro na Sociedade de Classes?
Fernandes - Vê-se, nessa totalidade de investigações, que passei do Brasil do ponto zero para o Brasil da vinda dos imigrantes, da desagregação do sistema escravista. "A Integração... é o trabalho mais importante que fiz, tanto em termos empíricos quanto teóricos. O título já é dialético, pois fala da integração que não houve. É um recurso descritivo de muita importância. A integração deveria ser o processo real, mas o que houve foi uma incorporação parcial, com uma segregação muito intensa.
Folha - Durante esses primeiros anos de pesquisa, qual era sua atividade política?
Fernandes - Cresci dentro de um ambiente em que as experiências humanas me levavam para a oposição, para o ressentimento. Na faculdade de filosofia, o que se ensinava era realmente o conhecimento científico da realidade. Não entrava em conexão com nenhuma prática. Era o edifício do saber de uma determinada disciplina.
Depois, quando me tornei assistente de professor, tive de enfrentar a situação típica da faculdade. Durante as décadas de 50 e 60, havia um corte dentro da universidade. Como professor, não se podia tornar muito sucessivas as suas preferências ideológicas. O professor era alguém que ensinava sociologia. E só. Era preciso manter-se dentro de um terreno científico tido como estritamente acadêmico. Já na relação com o meio, era possível ser alguém preocupado com os trabalhadores e com aqueles que estavam excluídos do trabalho.
Folha - Essas duas coisas não se misturavam?
Fernandes - Naquela época, as duas coisas corriam paralelas. Elas de fato só se interpenetraram na década de 60. E de forma progressiva. Embora certos professores integrassem uma coisa e outra no plano da personalidade, eram papéis que eles procuravam não misturar.
Folha - De qualquer modo, o sr. enfrentou o Estado Novo?
Fernandes - Sim, a primeira atividade política que eu realizei foi contra o Estado Novo, em 1942. Eu vivia seduzido pela luta clandestina contra o Estado Novo. Há aí uma evolução ideológica paralela e interligada a uma evolução científica. Na luta contra o Estado Novo, eu fazia parte do movimento trotskista. E era filiado à Quarta Internacional.
Folha - Como o sr. começou a trabalhar com o problema do desenvolvimento?
Fernandes - Essa era uma época em que o desenvolvimento era um dos sistemas mais vivos no campo das ciências sociais. A situação de países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, e os problemas de resistência às mudanças por eles enfrentados, me levaram a estender para fora do Brasil os problemas que eu tinha elaborado aqui. Foi aí que comecei a trabalhar com o desenvolvimento. Eu trabalhava às vezes com analogias entre o Brasil e outras sociedades da América Latina. Outras vezes, em perspectivas mais ricas, vinculadas ao conhecimento da realidade exterior. As convergências eram grandes.
Folha - E a dependência?
Fernandes - Disso tudo nasceu a necessidade de estudar melhor as relações entre os países periféricos subdesenvolvidos e os países centrais. Por aí eu começo a estudar as relações de dependência. E principalmente as formas de dominação. Eu não parti da dependência para combater o imperialismo. Ao contrário, eu compreendia que a noção de imperialismo não entrava em conflito com o conceito de dependência.
O imperialismo, na verdade, é um estado de fato. Se um país central desempenha funções imperiais (aglutina uma colônia, ou mantém controle sobre uma colônia que se tornou parcialmente independente), há então imperialismo. Existem ainda nações que não têm estatuto colonial nem neocolonial, mas de aproximação maior com o modelo da sociedade central.
Folha - O filósofo alemão Jrgen Habermas, em entrevista ao ``Mais!", argumenta que a "teoria da dependência não se sustenta porque supõe a "teoria do imperialismo, a qual ele julga falsa. Como o sr. vê esta posição?
Fernandes - O imperialismo não é questão de teoria, mas de sistema de poder. Ele abrange uma nação imperial e seus satélites. Por sua origem germânica, Habermas tem alto conteúdo historicista. Na Alemanha, o imperialismo foi identificado ao poder expansivo dos impérios. Isto é muito eurocêntrico.
Que se considere a expansão moderna, nos séculos 15 e 16. Países como a Espanha e Portugal conseguem impor domínios sobre povos chamados bárbaros. Criam colônias e por elas expandem suas estruturas de poder. Este é o protótipo mais simples do imperialismo.
Qual era a situação neocolonial? O Brasil rompe o pacto colonial. A família real instala-se aqui. O centro geográfico do império passa a ser o Brasil. Logo, a coroa deveria manter o controle da economia, da cultura e do poder. Mas, no fim, para onde se transfere o controle? Para a Inglaterra, que passa a ser o centro neocolonial do Brasil.
Essa transformação desagrega a coroa portuguesa. A economia teria de evoluir para o protótipo inglês e destroçar a herança portuguesa. Tem-se assim o imperialismo, que opera por relações neocoloniais stricto sensu. Não é porque não foi chamado de imperialismo nos séculos 16, 17 e 18 que não é imperialismo. O que está em jogo é um sistema de poder, não uma teoria. Habermas derrapou de modo exuberante. É incrível que alguém que conheça a economia moderna, como Habermas, cometa um equívoco como esse.
Folha - Como o sr. pensa a passagem, no Brasil, de uma situação neocolonial a uma situação de dependência?
Fernandes - Houve dentro do Brasil o desenvolvimento de um setor novo do modelo inglês. Havia a burguesia, o proletariado, uma produção industrial diferenciada, centros urbanos e até uma metrópole. Já do ponto de vista norte-americano, a carga era transformar a sociedade brasileira em uma réplica da deles, com pontos nevrálgicos de controle político, militar e cultural.
Em um trabalho sobre a dominação externa, que apresentei em Toronto ("The Latin American in Residence Lectures 1969-70), classifico três formas de dominação -colonial, neocolonial e de dependência-, que pressupõem situações de fato. São vários momentos sucessivos. O regime colonial e seu esfacelamento. A aquisição, pelas colônias, de potencialidades próprias de desenvolvimento, ainda que contidas pela dominação neocolonial. E a dominação por meio de dependência, que se implantava na América Latina.
Folha - Como a dependência era definida nesse momento?
Fernandes - A dependência estava sendo redefinida na passagem de um capitalismo urbano-comercial para um capitalismo industrial. Isso favorecia muito a penetração dos estudos por esse tema. Havia interesse ao mesmo tempo empírico, teórico e prático pelo que se estava fazendo. Isto me permitiu escrever muitos trabalhos que têm como eixo essa problemática, a qual acaba depois por ser redesenhada pela ditadura militar.
Folha - Qual é a relação entre a ditadura, como uma situação de fato, e o livro "A Revolução Burguesa no Brasil?
Fernandes - Minha luta contra a ditadura, como sociólogo e socialista, me levou a interpretar a realidade para melhor combatê-la. Essa é a origem deste livro. Foi isso que me fez remontar às nossas origens mais profundas. E não apenas às origens históricas. Elas estão sedimentadas no sistema de civilização que aqui se amalgamou com as formas de violência inerentes à escravidão, à implantação do trabalho livre e às dificuldades organizacionais dos trabalhadores.

Continua à pág. 5-5

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