São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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FLORESTAN ATACA O CONSENSO

Folha - Que origens são estas?
Fernandes - No livro, eu ponho em evidência, com originalidade, a transformação do trabalho escravo que se deu ainda durante a escravidão, depois da mineração. O excedente da força de trabalho escravo já não é todo exportado. Ele fica aqui para dinamizar a expansão econômica da sociedade brasileira e dá origem ao comércio triangular entre Brasil, Portugal e Inglaterra. Foi a partir desse comércio que os fazendeiros realizaram a acumulação originária, que não foi soterrada pela dominação colonial e neocolonial.
Com a desagregação do sistema colonial, houve uma expansão muito rápida de um novo setor da economia, que veio a determinar uma nova evolução interna. O senhor começa por negar a condição burguesa, para se afirmar como nobre. E termina, com a crise do escravagismo, repudiando a condição de nobre em favor da situação burguesa. Houve aí uma violenta transformação da realidade.
É natural que a vitalidade da sociedade brasileira tivesse raízes próprias, mas era deficiente. Há, de outro lado, determinações externas, que vêm de economias imperiais. É por meio desta fusão entre o dinamismo do sistema capitalista mundial e nossas reações a ele que explico como chegamos à ditadura. A sociedade brasileira pretende autodeterminar-se, mas é determinada pelas nações imperiais. A elite da burguesia internacional tem convergência de visão e transformação da realidade.
Folha - Como o sr. situa este trabalho em relação à obra?
Fernandes - Este trabalho é o coroamento de todos os outros e, ao mesmo tempo, se abre para a realidade de nossos dias. Representou a tentativa de apanhar o poder da ditadura dentro de uma focalização macro-sociológica. É um trabalho com implicações psicológicas, históricas, filosóficas e políticas. E todas elas agregadas.
Ele não repete aquela visão surgida nas ciências sociais do Brasil que procura explicar de forma mecanicista a evolução econômica do Brasil. Parte-se da natureza da colonização para chegar à idéia de que, no Brasil, se teria introjetado uma evolução autônoma, independente de qualquer condicionamento externo. Se isso fosse verdadeiro, teríamos chegado à revolução burguesa. Teríamos acompanhado as transformações do capital oligopolista. E por nossa própria via. Era uma fantasmagoria.
Folha - O que o sr. chama de revolução burguesa brasileira?
Fernandes - A revolução burguesa é aqui uma revolução interrompida. Ela não se completa, como aconteceu na França, na Inglaterra e em outros países desenvolvidos. O que se pretendia? A revolução burguesa. Por que não se consegue? Porque a própria burguesia não tinha condições de manter essa revolução. Por ser muito conservadora, reacionária e opressiva, a burguesia não se interessou pela revolução urbana nacional.
Tudo era mantido dentro do limite que convinha à estabilidade e à ordem. Mas a ordem imperante não era a ordem existente em Paris ou Londres. Era a ordem existente no Brasil. Por aí é possível ter um retrato da burguesia e dos processos que tiveram importância na transformação capitalista.
Folha - Como foi o combate à ditadura, que por fim o levou ao exílio?
Fernandes - Eu combati muito a ditadura militar. Quando fui punido, não acho que eles tenham feito nada de mais. Eu estava combatendo abertamente. Fazia conferências sobre negros, reforma universitária, reforma de base. Não era matéria para me punirem. Mas, de fato, toda essa atividade tinha um sentido socialista imanente e explícito, que eu procurava aprofundar na comunicação oral. Quando me puniu, o regime estava punindo um adversário.
O dr. Júlio de Mesquita Filho tentou me tirar da lista dos caçáveis. Eu lhe disse que ele estava sendo um mau juiz do meu comportamento. Disse-lhe também que, se eu conseguisse a situação inversa, não teria maior condescendência para com ele.
Folha - O sr. citou há pouco a ausência do mecanicismo como uma das virtudes explicativas de seu livro "A Revolução Burguesa no Brasil. De modo geral, como o sr. vê o problema do determinismo e, portanto, do mecanicismo nas ciências sociais?
Fernandes - O determinismo e o mecanicismo, como modelos de ciência, não são adequados para os processos de vida. E isso não só na sociologia, mas também na biologia, na política e em outras ciências humanas. É fácil dizer: "Se A antecede B, então A é causa de B. Isto pode ser uma falsificação.
Se se lida com uniformidades de sequência e se usa o mecanicismo, recorre-se a petições de princípio, como a idéia de que certas regularidades são inevitáveis, pois a vida se reproduz. Sol Tacks diz que as sociedades tribais não sofriam mudanças. Isso é falso. Se o que um dia é novidade se repete, cria-se a ilusão de que o comportamento é determinado.
Folha - A seu ver, o importante é então retratar a alteração?
Fernandes - Sim. A sociologia nasceu da crise do sistema capitalista moderno, no século 19, como um conjunto de preocupações que apanham a mudança. Trata-se de um sistema de civilização que necessita da mudança para se manter em equilíbrio. O essencial é partir da idéia de sociedades que mudam, que, quando não se transformam, se enfraquecem.
O determinismo só poderia ser aplicado nesse caso como determinação da constância na transformação perpétua. Na realidade, uma coisa é a variação, outra é o determinismo que se insere na variação. A variação não tem espírito próprio, nasce de elementos referidos ao comportamento de milhões de indivíduos, classes, lutas de classe, conservadores, liberais, revolucionários e tudo mais.
Folha - O sr. é com frequência associado ao nascimento da sociologia científica no país. Como o sr. vê a história dessa formação?
Fernandes - Eu escrevi um pequeno ensaio, "Padrão da Análise Científica do Sociólogo Brasileiro, em que se pode encontrar o fulcro da preocupação em não permitir que a análise científica fosse solapada por condicionamentos ideológicos. O problema não é a existência da ideologia, mas o controle da ideologia. O investigador precisa estar alerta para determinar qual é influência de fatores interferentes em sua visão da realidade.
Combinando este trabalho com um outro, "A Reconstrução da Realidade nas Ciências Sociais, procuro dar conta de como é possível reproduzir o empírico em suas determinações internas. A realidade é um caos. Como é que se pode introduzir ordem no caos? É preciso fazer a passagem dos elementos empíricos mais simples aos mais complexos, até que se chegue a uma reposição da realidade virtual passível de conhecimento pelos sentidos ou por técnicas analíticas.
Já a passagem desse patamar para outro nível pertence à esfera da interpretação e da representação. Pela análise, isolam-se os fatores que têm importância e determinam o todo. Aí se tem, no lugar do caos, os fatos em sua totalidade. Não a totalidade como ela se daria a partir de sua existência empírica. Mas a totalidade que se abstraiu e saturou para descobrir como explicar os processos importantes ou da vida econômica, ou das relações sociais, ou dos padrões culturais e por aí afora.
Folha - Isto envolve o rigor conceitual.
Fernandes - O que interessa é que, quando se pensa, e se fala, em nome da sociologia, é preciso ter rigor no uso do pensamento e precisão na aplicação de conceitos. É preciso refinar os conceitos. Eles precisam ser claros para não haver confusão quando se pretende explicar a realidade. Senão, não se explica coisa alguma, apenas se desloca a ignorância de um nível para outro (risos). A sociologia não é uma linguagem bem feita, ela é mais do que isso. Ela procura conhecer e explicar a realidade em diferentes circunstâncias.
Folha - Após todo esse percurso, é possível então ver uma das origens da "teoria da dependência em sua obra?
Fernandes - Não sei com precisão o que foi que o Faletto falou, mas me honrou muito. Eu o respeito como um dos cientistas sociais mais íntegros. Pelo que a Folha colocou, ele não se referia a mim em termos de dependência. Ele se referia aos meus estudos sobre desenvolvimento, que criaram o clima para se investigar quais eram as vias que aceleravam ou amorteciam o desenvolvimento. Essa é a preocupação da teoria da dependência: o desenvolvimento na periferia era asfixiado pelos países centrais.
Folha - E sobre a origem do termo dependência? Foi o sr. que começou a usá-lo?
Fernandes - No fim dos anos 50, usei muito a palavra heteronomia. E, até mesmo antes, quando falava de Max Weber. Depois, achei-a muito complexa para leitores não familiarizados com a linguagem acadêmica. E passei a usar o conceito de dependência, que retirei de um escrito de Lênin dedicado a povos coloniais, semicoloniais e dependentes. Dei uma calibração diferente da que aparece em Lênin e usei sem me preocupar com uma teoria.
Folha - Qual é a sua análise da esquerda brasileira atual?
Fernandes - Há um erro na avaliação daqueles que pensam que a esquerda foi desmantelada ou sufocada pelos acontecimentos que levaram de roldão os regimes antes existentes na União Soviética e no Leste Europeu. No panorama político, há sempre polarização de centro, esquerda e direita.
Para que a esquerda ligada ao socialismo revolucionário e ao marxismo tivesse sucumbido (e assim estivesse condenada ao silêncio), seria necessário que o capitalismo da fase atual conseguisse uma equação definitiva para a chamada "questão social. Não é o que ocorre. Os países centrais, ao atingirem a plenitude do capitalismo oligopolista automatizado, engendraram condições nas quais tende a aumentar a porcentagem da população desempregada e marginalizada.
Esses países criaram ao lado da periferia que haviam absorvido nas migrações de asiáticos, africanos, latino-americanos e mesmo europeus pobres, uma outra periferia, que nasce diretamente de sua população. São os sem classe da nova era, candidatos à nova condição de párias.
Folha - A chamada globalização é vista por muitos como uma solução para o problema dos excluídos. O que o sr. pensa dela?
Fernandes - Em países da periferia, como o Brasil, a incorporação às ditas economias globais, a dita globalização, suscita problemas de gravidade extrema, que ameaçam os trabalhadores, os sindicatos, as classes médias em desnivelamento e os ideais de desbarbarização do mundo. Os efeitos negativos previsíveis desse processo em marcha é a herança bárbara que se choca com as aspirações de igualdade, liberdade, democracia, cidadania, universalização da educação de qualidade e tudo o mais.
Os socialistas não são como muitos insistem equivalentes dos dinossauros em busca de nova glacialização. Ao contrário, detêm os meios de análise dos processos que estão em efervescência e, ao mesmo tempo, lutam pelas alternativas que restam à humanidade em virtude da incapacidade do capitalismo de responder positivamente às exigências mínimas do viver coletivo com dignidade.
Folha - Eu gostaria de falar sobre sua relação com FHC e o significado da eleição dele para presidente. É verdade que FHC foi privilegiado entre os discípulos? Dizem que ele foi o primeiro discípulo a chamá-lo de Florestan, e não de professor ou mestre, como era usual, e que o senhor teria aprovado esta ousadia do aluno dileto. É verdade?
Fernandes - Não. FHC sempre me chamou de senhor, até recentemente na entrega da condecoração da Ordem do Rio Branco. A sua eleição é o resultado de um processo maior do que a pessoa. É o resultado de todo este processo pelo qual passou o país, e que eu que acabei de descrever. Não quero falar sobre a pessoa de FHC.
Folha - E sobre o governo FHC? Como o sr. avalia estes primeiros meses de governo?
Fernandes - O que penso do governo FHC está na coluna que escrevo para a Folha. Eu não gostaria de falar de FHC. E isso para não magoar nem a ele nem a mim mesmo.
Folha - Faletto comenta que Weffort, antes mesmo da eleição de FHC, quando ele ainda era membro do PT, dizia que o melhor para o país seria a eleição de FHC, e não de Lula. Há pouco tempo, Weffort, em entrevista à Folha, teceu elogios à "sensibilidade social de Antônio Carlos Magalhães e do PFL. O que o sr. pensa destas declarações?
Fernandes - Com Weffort ocorre o mesmo problema que com FHC. Weffort é meu amigo, concorreu comigo na eleição para deputado constituinte e botou na cabeça que perdeu por minha causa. Não faço parte do governo e não quero aguçar os problemas. Também não vou falar sobre ele. É melhor deixar o governo de lado.
JOSÉ LUIS SILVA é mestrando em filosofia na Universidade Federal de São Carlos

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