São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 1995
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Um senador dialético

JOÃO SAYAD

Hoje é um bom dia para especular -no bom sentido. No sentido de pensar livremente e tentar entender o caso do Banco Econômico. É uma excelente oportunidade para pensar sobre os liberais, na definição brasileira, sobre Antônio Carlos Magalhães, senador eminente da querida Bahia, sobre os liberais que estão em quase todos os partidos brasileiros, do PPR até o PSDB, passando, é claro, pelo PFL, mas que existem até no PT.
Todos são liberais no sentido de acreditarem que o mercado e a livre concorrência são a melhor solução para um série de problemas da sociedade brasileira: a recuperação do crescimento econômico, o aumento da produtividade da economia brasileira, o progresso e a construção, aqui no Brasil, de uma sociedade próspera, criativa e mais justa. Homens de bem e bem intencionados.
O que há de comum entre eles?
Vamos ver: defendem, para o caso específico do Brasil, a reforma do Estado, o fim dos privilégios para empresas, regiões e funcionários públicos, o controle estrito da quantidade de moeda, o fim da proteção à indústria nacional, o estabelecimento de uma ética capitalista entendida como a concorrência leal entre empresas, trabalhadores e nações.
Muito bem, acho que fui justo na tentativa aristotélica de classificá-los em uma mesma espécie. Mas falta alguma coisa. Devem existir gêneros diferentes dentro desta grande espécie. Afinal de contas, os nomes citados são de partidos diferentes e têm assumido posições diferentes sobre vários temas.
Sobre a quebra do Econômico temos duas posições liberais: os liberais de carteirinha protestaram contra a possível existência de uma solução para o caso. Verdadeira ou não, saiu na imprensa uma solução: uma empreiteira, a Odebrecht, pagaria o débito do Econômico com o Banco Central, usando para isto contas a receber que o Tesouro Nacional ainda não pagou. Assim, o Tesouro ficaria livre de uma dívida e o Banco Econômico, livre de outra, o redesconto.
Ainda faltaria dinheiro para pagar o Banco Central. O restante seria coberto pela venda das petroquímicas pertencentes ao Banco Econômico aos grupos industriais que estão competindo pela compra das petroquímicas a serem privatizadas. Salva-se o banco, os correntistas (especialmente o querido Jorge Amado), o Tesouro se livra de uma dívida. Sopa no mel. Esta me parece a solução defendida pelo senador Antônio Carlos Magalhães. Não sei se existe.
Não é uma proposta nova. No auge do ``milagre brasileiro" quando o liberalismo assumia suas contradições, os bancos com dificuldades eram comprados pelos bancos sem dificuldades com apoio do Banco Central. O discurso oficial afirmava que a atividade bancária tem ``economias de escala" e que, portanto, bancos maiores seriam mais eficientes e cobrariam juros menores! E assim se formaram muitos dos conglomerados financeiros de hoje, e talvez até o Econômico tenha crescido desta forma. Pensando bem, uma boa solução. Pois o Banco Central terá sempre de assumir, aqui, na Inglaterra, em Cingapura e em Shangri-la, a missão de preservar a solvência do setor financeiro e salvar os bancos com problemas, ainda que não deva salvar seus proprietários. E durante o governo autoritário, era mais fácil, menos doloroso e mais barato.
Os liberais de carteirinha, todos os outros, protestaram contra a ``solução" liberal baiana. Por que? Imagino que seria um ``privilégio" para os donos atuais do banco (mas pelas notícias da imprensa, estes já se salvaram), que não acham justo pagar apenas algumas empreiteiras e, principalmente, porque querem estabelecer uma verdadeira disciplina capitalista: quem é incompetente tem de quebrar, a política monetária tem de ser rígida, seria mais uma negociata.
Resultado: os correntistas ficaram sem o seu dinheiro, o Banco Central ficou com um buraco de US$ 1,7 bilhão de redesconto, o Tesouro Nacional ainda deve as contas da empreiteira Odebrecht, os funcionários do Econômico vão perder o emprego. Uma solução pior para todos.
O senador Antônio Carlos Magalhães pensa diferente dos colegas liberais. E fala diferente. Por que? Por que é baiano? Por que a Bahia é sincrética? Por que é malvadeza? Por que é ternura?
Não sei responder. Mas começo com uma pista. O ministro Weffort, ex-PT, em inteligente e brilhante entrevista no Roda Viva, falou duas coisas interessantes: primeiro que o senador Antônio Carlos Magalhães tem ``sensibilidade social", depois que a discussão brasileira sobre política tem um ``déficit intelectual". Acho que por aí poderemos pelo menos pensar na distinção entre o liberal baiano e os outros liberais.
``O liberal baiano tem sensibilidade social." Não pode ser nada parecido com o Betinho ou com d. Paulo Evaristo Arns. São pessoas muitíssimo diferentes. Acho que ``sensibilidade social" deve querer dizer que o senador tem uma boa percepção do todo. Entende que existe uma contradição entre a proposta liberal -concorrência ética, leal, a cada um de acordo com sua competência- e a realidade. Tem um discurso contraditório -salvem o Econômico, mas sou liberal. O resultado de sua proposta seria bom para todos -depositantes do Banco Econômico, Tesouro Nacional, Banco Central, investidores do setor petroquímico, funcionários do banco e a querida Bahia. Mas ilógico, inconsistente com a ``ética" capitalista.
Os liberais de carteirinha têm um discurso lógico -disciplina, concorrência, quebrem os incompetentes. Salvou-se a lógica, mas o resultado foi contraditório -ficaram todos em pior situação, desde Banco Central e Tesouro Nacional até os coitados dos funcionários do Banco Econômico.
Descobri porque o senador tem ``sensibilidade social". Tudo se passa como se o senador se comportasse como um general, que viu o todo, e entende que o discurso liberal é de fato contraditório porque a realidade é contraditória. E assume com malvadeza a contradição do discurso, que apesar disto geraria soluções melhores para todos. Os ``liberais de carteirinha", como sargentos, só conhecem as ``regras lógicas", o ``manual de procedimentos", e têm um discurso lógico mas inconsistente com a realidade. Têm uma lógica impecável, como os sargentos, mas volta e meia sacrificam um batalhão.
A contradição não está no discurso do senador. A contradição está na economia capitalista.
O presidente Fernando Henrique Cardoso sofre literalmente a contradição. Como intelectual, tem a consciência clara da contradição das propostas dos liberais de carteirinha. E num primeiro momento aceitou ajudar. Depois, lembrou que, como político, apesar de general, que vê o todo, teve de falar para a tropa, assumir o discurso liberal e dar a ordem firme para os sargentos.
E o Brasil vai desenvolvendo uma dialética regional -o Rio tem um discurso ``liberalizante" de juros altos, abertura comercial, pau na indústria, pau na agricultura, pau nos empresários e viva os correntistas e banqueiros! De São Paulo para o sul, coitados de nós, somos protecionistas, heterodoxos, ultrapassados, pré-históricos. Ainda bem que temos um banco tão diferente do Econômico que parece igual.
Só a Bahia pode nos salvar -a Bahia sincrética, do camdomblé ao catolicismo. A Bahia que assume de peito aberto a ternura e a malvadeza. Talvez o ``capitalismo ético", esta grande contradição, venha a ser a contribuição mais importante da Bahia para que nós nos conformemos -não há de fato o que entender.

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