São Paulo, terça-feira, 29 de agosto de 1995
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Modernos e barrocos dominam mercado

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Os festivais de Salzburgo e Bayreuth cumprem a função de plataforma de lançamento de CDs da música erudita.
A indústria aproveita os dois eventos para traçar as linhas dominantes de um mercado cujo consumo cresce de ano a ano. Já abocanha 30% do mercado europeu.
No Brasil, são menos de 10%. Por isso, aqui vigora a tendência atrasar os lançamentos em até dois anos.
Este ano ocorre um reordenamento de prioridades. A tradição romântica dá aos poucos lugar à prática histórica e à experimentação do século 20.
Para o maestro Nikolaus Harnoncourt, 66, o astro regente da temporada, a alteração de eixo já não era sem tempo: ``A moda da música histórica é um passo para a passagem do som contemporâneo à corrente principal do mercado."
A música histórica -que privilegia os instrumentos de época e as leituras musicológicas das partituras- valoriza a transparência das formas, fato fundamental para a recepção das composições modernas e contemporâneas.
Harnoncourt trabalha para a Teldec, gravadora alemã de pequeno porte que tem-se destacado na releitura histórica do repertório habitual.
Chegam às lojas dois títulos com obras de Ludwig van Beethoven (1770-1827) interpretadas pela Orquestra de Câmara da Europa, regida por Harnoncourt: o álbum duplo com a ópera ``Fidelio" e o CD com a peça para balé ``As Criaturas de Prometeu".
O maestro quer uma versão despolitizada da ópera. Mas a subversão de conteúdo não funciona. Fidelio continua padecendo de melancolia revolucionária. Em ``Prometeu", Harnoncourt executa pela primeira vez na sequência original os 18 movimentos do balé de 1801. A leitura é agressiva e contrastante, como requer esse opus inicial do romantismo.
No terreno barroco tardio, a Teldec colheu duas obras de mestres italianos: ``Concerti Grossi", de Pietro Antonio Locatelli (1695-1764), com a orquestra alemã Concerto Kõln, e os concertos ``Il Proteo", de Antonio Vivaldi (1678-1741), com o grupo italiano Il Giardino Armonico.
Os dois conjuntos têm 10 anos de carreira e se devotam aos programas pouco executados. Vivaldi virou chavão, mas Il Giardino Armonico tira dali o máximo de ineditismo possível. Realiza a operação nas cores instrumentais.
Locatelli recebe uma abordagem limpa de quatro de seus concertos opus 1 e 7, respectivamente de 1721 e 1735.
O único lançamento simultâneo no Brasil é o pacote da Virgin Classics, que tem como destaque o ``Concerto para Violino", do compositor alemão Kurt Weill (1900-1950), com a Deutsche Kammerphilarmonie e o vilonista Christian Tetzlaff. Versão rigorosa e entusiasmada. A música contemporânea começa a adentar o nível da interpretação. Até hoje, viveu de dificuldades.
A gravadora BMG Ariola aposta nesse novo universo. Lança ``Búsqueda" e ``Visitatio Sepulchri", peças para orquestra do compositor escocês James MacMillan, 36, com a Orquestra de Câmara Escocesa regida pelo autor, e uma releitura pós-modernista do ciclo de lieder ``Winterreise", de Schubert pelo compositor alemão Hans Zender, com o Ensemble Modern de Frankfurt.
MacMillan persegue o impacto emocional no laboratório de tons, algo que os contemporâneos esqueceram por longas décadas. Suas peças são tensas e tonais, meio à maneira do italiano Luciano Berio. A facilidade de audição, porém, é um alívio para os ouvintes cansados de distorções pseudo-modernas.
Já Zender confecciona um monstrinho de Frankenstein a partir daquilo que ele chama de ``ícone de nossa tradição musical". Injeta instrumentos e vocalises diante dos quais o pobre Schubert teria uma hemoptise. Vale pelo bizarro. O Ensemble Modern é a orquestra de música contemporânea mais talentosa e ativa. Extrai sentimentos das partituras mais áridas.
O selo Archiv, ligado à companhia alemã Deutsche Grammophon, anda meio inativo. Mas edita um álbum triplo com a ópera ``Hipolyte et Aricie", do francês Jean-Philippe Rameau (1683-1764), com Les Musiciens du Louvre, regido por Mark Minkowski. É a execução mais teatral e feliz da ópera de 1733.
A holandesa Philips, bastião do tradicionalismo, edita o programa básico a cargo de músicos consagrados, como as sonatas de Beethoven pelos pianistas Alfred Brendel e Mitsuko Ushida.
A companhia põe o italiano Riccardo Muti à frente da Filarmônica de Viena para reger as sinfonias ``Júpiter" e ``Paris", de Mozart, e as sinfonias números 1 e 4, de Schumann. Tudo previsível. Nesse universo, o barítono russo Dmitri Hvorostovsk, 32, cria algum fato artístico no disco ``My Restless Soul", com programa russo romântico. Sua interpretação de quatro canções de Rachmaninoff vibra paródica e provoca risos.
O ``Requiem" e as ``Quatro Preças Sacras", do italiano Giuseppe Verdi (1813-1901), são a maior novidade da Philips. O maestro inglês John Eliot Gardiner se atreve numa versão para instrumentos históricos das partituras estreadas na igreja de São Marcos, Milão, em 22 de maio de 1874.
Gardiner consegue reger com leveza o Coro Monteverdi e a Orquestra Revolucionária e Romântica. Onde se anunciam peças lentas, ele imprime velocidade.
Leituras de época para o repertório novecentista soam como gravações antigas com instrumentos embolorados. Raspando a superfície da obra de Verdi, Gardiner obtém colorações beethovenianas. O regente quase realiza a fantasia de interpretar a música contemporânea com instrumentos originais.

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