São Paulo, terça-feira, 29 de agosto de 1995
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Buzunga caiu em depressão profunda

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Cena 1
Barraco. Favela do Pavãozinho
"Sai dessa, cara!" - disse Pereba.
"Não dá... a vida não tem sentido...", gemeu Buzunga na cama do barraco.
"Como, não tem?", falou Pereba atônito. O assalto é às quatro! Tá todo mundo esperando... o Tulé, o Betão, o filho da Neuza vai ser chofer, o guarda do banco tá conosco... tu é o chefe!..."
"Que chefe nada... somos uns bostas... tou na maior deprê, brother..."
"Cheira uma..."
"Não adianta... cara... hoje eu ganhei a consciência de que nós somos um bando de desgraçados, analfabetos. Tu... tu estudou?"
"Fiz o Ciep... enquanto teve merenda..."
"Pois é... ficou claro para mim: nós pensamos que somos gente, que somos o Rambo e coisa e tal, a gente acha que está por cima da miséria, da favela, e o cacete a quatro... e de repente... baixa a consciência de que não somos nada..."
"Como, `nada'? Tu é o Buzungão! Assaltou quantos supermercados, quantos bancos?
"Qual foi nosso lucro até hoje?"
"Sei lá... no Itau, deu pra tirar uns cinquentinha..."
"Isso era a sacola do guarneco que me deu o tiro... Isso é mixaria... Tu tá por fora... muito ignorante... qual é a diferença entre roubar um banco e fundar um banco?"
"Não sei, disse Pereba", impressionado com o chefe. "Mas, tu é o Buzung..."
"Cala a boca! Olha aí! Sai da frente da TV! Viu? Olha ele aí de novo, o dono do Econômico! Tu já foi entrevistado, Pereba babaca? Tu não foi nada... Tu só foi entrevistado foi lá na 9ª DP, debaixo de porrada pelos homens... Veja a diferença... Que beleza... Olha os cabelos negros de tintura, olha a perfeição do implante do cabelo dele, viu? Mesmo na dor, vemos que ele se ama, cuida da aparência... Isto é o presidente de um banco! Olha como ele enfrenta o repórter com galhardia... Olha como as palavras lhe saem fluidas... não é este gaguejo torpe meu ou teu! `Buzunga'... Isso é nome? `Pereba'... Ele, não: `Calmon...'. Ouve o som da palavra... parece remédio para dormir... viu? Ele disse que não dorme de noite... nem com bolinha... está nervoso... Viu, como lhe fica bem a pose de culpado e insone? Ele afeta estar preocupado com os pobres que sofrem por causa da `bruta' intervenção no seu banco... Viu seu rosto de preocupação social?... Viu como ele é belo e emociona pela sobriedade da camisa e da gravata?... Eu tenho gravata?... Tu tem? Ouve a música da voz baiana de um homem de bem... ouça como os termos soam `técnicos e puros' Viu o que ele falou? `Meu filho sacou 250 mil reais para honrar compromissos contratuais'... Viu? Alguém pode culpar um homem desses? Imagina se eu digo ao guarda que me baleou por causa dos 50 mil, que era para `honrar compromissos contratuais'... Que homem lindo... Eu não sou viado, tu sabe... Mas ele deve ter amantes louras... Olha os gestos dignos... Chego mesmo a ver um tremor de orgulho nesta dor que ele ostenta sentir... Vejo nele até uma volúpia por ser acusado, como uma Joana d'Arc do mercado financeiro, sabendo que sua elegância o salvará, sabendo que os melhores advogados, também de cabelo implantado, o esperam na ante-sala, sabendo que é doce sofrer num jatinho, tomar uma sauna de descarrego no clube, chorar num porre de champanhe com a amante na suíte imperial do Salvador Crazy Love... Ele sabe que está salvo... Já foi ministro, é de família antiga, é da imemorial fazenda escravista que é a Bahia, desde dos tempos de Tome de Souza. Está protegido por alfombras contra a prisão mais dura... Sabe que faz parte de um mundo inatacável, delicioso e que logo será esquecido pelos jornais... Você viu as passeatas em Salvador? Nenhuma faixa contra ele... Tudo contra o FHC! Na cabeça do povo, tudo é culpa do `governo', este pai transcendental que nunca pode romper o pacto clientelista com as elites. Quem se lembra de Lupion, do buraco do Lume, de Ademar, quem vai encanar os quercistas que quebraram o Banespa? Ninguém. Tudo vai se dissolver no ar em uma debandada de perfumes, como disse Rimbaud!"
"Onde tu aprendeu isso, Buzunga?" - gemeu Pereba.
"No Ciep intemporal, na Universidade do Crime Poético!... Como foi bela a fúria de ACM invadindo o Planalto... Foi uma lição de história. Sergio Buarque não faria melhor... Aquela marcha foi a aristocracia agrária saindo do fundo do Nordeste para atacar os paulistas... O agrário contra o urbano! O privado acima do público. ACM parecia a verdadeira alma nacional... Era o Brasil, o meu Brasil poético! Até Jorge Amado se uniu... Até o MR-8 gritou: `Dá-lhe camarada, ACM!' Viu? Tudo se une no vatapá da nacionalidade!... Só eu não estava lá; seria enxotado feito cachorro... Veja que dor sinto na alma... Olha, olha lá o gabinete dele; o mundo pode acabar, mas aqueles lambris de mogno resistirão... Viu? Viu que frase linda ele disse agora? `Acho natural que um diretor de banco saque antes da intervenção...' Ele está certo!... É natural mesmo, dá-lhe meu príncipe! Viu agora? Ele disse que o patrimônio dele é de 93 milhões de dólares... Veja como soou bem a palavra `patrimônio', como é linda?... Qual é teu `patrimônio', Pereba? Este barraco de merda aqui? Ele não; ao dizer `93 milhões de reais de patrimônio', tremeu-lhe uma luz de orgulho, logo esbatida pela frase: `Mas, tenho dívidas, tenho dívidas...' Que beleza! A densa responsabilidade do poderoso, a dramática vida de banqueiro complexo... Quanto não mandaram para as ilhas Cayman? ...Tu sabe onde é, babaca? Não é em Belfort Roxo não; tem praias, mulheres, um paraíso fiscal, não é a praia de Maria Angu não... Linda frase: `Mas... tenho dívidas!'... Quem as tem? Ele ou a pessoa jurídica? Bela esta divisão do homem em: física e jurídica! O cara é limpo fisicamente, suave, gentleman, mas como `pessoa jurídica', bem... aí... Já pensou, Perebão (Buzunga se anima) já pensou em assaltar o Citibank e dizer: `Quem assaltou não fui eu; foi a Buzunga Empreendimentos Armados Ltda., com sede em Barbados', hein?! Que chique, hein `seu' Pereba, isso é que é!!! Buzunga Ltda. saca antes!!! Ah!... Ah! ahhh... Não repara minhas lágrimas não, Pereba, não conta pro Betão, mas eu queria ter estudado, minha mãe se matou no Mangue pra eu estudar... Eu queria ser diretor de banco voando no meu jatinho para as Bahamas... e não este pobre pardo que eu sou... Olha aqui na revista quanto sacaram: Um milhão, trezentos, cem... e tudo `virtual', no papel, a secretária gostosa de saia justa rebolando no fax... ar condicionado: `1,3 milhão sai da conta do doutor e não para conta azul número tal' Tudo sem barulho, sem sirene, sem bala... tudo limpinho... na fibra ótica... Não, Perebão, eu não vou ao assalto... tou na maior depressão..."
"Cheira uma... por favor, vamos!"
"Tá legal... Eu vou porque combinei com a turma... Mas, não quero pó não... pega ali na sacola da farmácia um Prozac... Tá bom... Vamos lá pro banco! Última vez, hein!"

Cena 2
Agência de banco
Buzunga e a gang invadem o saguão de um banco. Buzunga grita: "Todo mundo no chão! Isto não é um assalto; é uma intervenção!" Um segurança atira em Buzunga. O pobre bandido cai numa poça de sangue. Os outros fogem. Seu corpo no mármore treme no delírio da agonia. Buzunga sonha que está num jatinho, indo para as ilhas Cayman.
Ele sorri na morte. É feliz.

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