São Paulo, quarta-feira, 30 de agosto de 1995
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EUA celebram o fracasso em 'Apollo 13'

MARCELO COELHO

Filme sem heróis humanos reflete ineficácia americana no momento em que o país se sente mais inepto
A pollo 13" é um filme emocionante sobre os perigos enfrentados pela terceira expedição da Nasa com destino à Lua. Os astronautas quase morreram sem entender nada do que acontecia. O espectador passa por outro risco. Quase se chateia, sem perceber exatamente o que está acontecendo com ele. No final, todos -o público e os tripulantes- salvam-se brilhantemente.
Digo que há riscos de tédio nesse filme, porque as dificuldades vencidas pelos heróis são sobretudo de ordem técnica. Não há vilões, exceto o circuito elétrico, a reserva de oxigênio, a blindagem de titânio. Um feito de engenharia se torna épico; um pormenor matemático ganha dimensões vitais. O heroísmo parece ser mais uma questão de paciência que de coragem, mais um esforço racional que impulso espontâneo.
O filme se torna assim menos romântico do que a média. Seria uma espécie de romantismo para engenheiros, de epopéia para matemáticos. Dois terços de "Apollo 13" se concentram, creio, nos esforços e raciocínios do pessoal da Nasa para vencer a inumerável quantidade de desafios técnicos impostos pelo acaso, pelo azar.
Mas as formiguinhas humanas da Nasa fizeram bem o seu trabalho. E, com todo o cansaço, o espectador sente que foi recompensado ao ver o filme. As formiguinhas de Hollywood tampouco brincam em serviço.
Afora a questão essencial -Tom Hanks sobreviverá? Ou vai morrer?-, há muitas outras coisas em jogo e daí deriva o interesse, o fascínio, a habilidade do filme.
"Apollo 13" explora maravilhosamente os recursos da ironia. O espectador "sabe" mais do que os personagens da história. Uma frase qualquer se reveste de significados mais profundos, além da consciência de quem a enuncia. Este o maior prazer do filme, esta sua maior emoção; a chatice técnica se dissolve à medida que cada instante da narrativa parece vibrar em significações ocultas.
A primeira "significação oculta" é, evidentemente, o fato de ter sido a Apolo-13 a missão que deu azar. E quanto azar! Mas, ao mesmo tempo, quanta sorte! E eis aí uma das ironias básicas da história. Pois é claro que, quanto maior o risco por que passa alguém, maior a idéia de que houve "sorte" ao superá-lo. O sujeito está perdido, foi baleado numa estrada deserta: que azar. Mas que sorte! Precisamente na hora em que ia morrer aparece uma ambulância que tinha perdido o caminho, ele foi medicado, passa bem.
"Apollo 13" mostra todas as coincidências sugeridas pelo número. É incrível que tenha sido justamente essa a missão a dar errado no espaço. Os "fatos" em torno da expedição sugerem que as "superstições" eram verdadeiras.
Mas é essa a sorte de todas as superstições. Elas só são lembradas quando dão certo. Quando fixam, pelo acaso, uma espécie de coincidência significativa.
Se a Apolo-13 tivesse dado certo, ninguém se lembraria dos mitos em torno do número 13. Mas a superstição em torno do 13 continuaria -pois só se recorre ao que funciona. Esse é o pragmatismo perverso de toda superstição.
Com o número 13, as "ironias do destino" atingem uma significação especial no filme de Ron Howard. Mas o mérito do produto está em ter explorado de inúmeras formas essa idéia de ironia.
Um exemplo: a missão da Apolo-13 não despertava maior interesse nos meios de comunicação. Mais um homem andando na Lua! Isso já foi visto. De repente, as coisas se tornam dramáticas. O sucesso na mídia surgiu em decorrência do fracasso técnico. Subitamente, milhões de pessoas se interessam por um fato "banal".
Ironia das ironias, esse mesmo fato banal -que com o fracasso tornou-se heróico- foi esquecido de novo. Ninguém, que eu saiba, se lembrava ainda do drama da Apolo-13 antes do filme ter sido feito. O drama se renova e de novo o fracasso constitui um sucesso (de público).
Duas personagens do filme se tornam especialmente irônicas nesse contexto. A primeira é vivida por Gary Sinise, o astronauta treinadíssimo que é tirado da missão por suspeita de sarampo.
Que azar! Ele queria viajar para a Lua e, por razões de segurança médica, está impedido de ir. Frustrado, vê o lançamento do foguete. Pouco tempo depois, deve ter acreditado que foi sorte: os escolhidos para a Apolo-13 estavam quase morrendo. Mais 24 horas, estes são os heróis da pátria. Azar de novo para Gary Sinise.
Anos se passam. Ninguém se lembrava mais do drama. Tanto faz ter participado dos fatos ou ter sido poupado deles. Mais alguns anos se passam. O drama vira filme e Jim Lovell (Tom Hanks) recupera a celebridade. E Gary Sinise, no papel do protagonista relegado de um drama esquecido, o herói que se poupou de um risco de mentira, ganha de novo interesse humano. Torna-se mais heróico, no papel de herói ausente.
A segunda personagem é a mãe de Jim Lovell, o comandante da expedição. A mãe de Jim Lovell está num asilo, meio gagá. A ironia intervém a cada momento em que ela toma a palavra. Não está consciente dos reais perigos pelos quais seu filho está passando.
Primeira ironia: por maiores que sejam esses perigos, a mãe acredita que seu filho é bom o bastante para superá-los. De modo que, entre a "gagazice" e o amor maternal, ela escolhe ambos -e nem se preocupa, enquanto todo mundo está (maternalmente) preocupado.
Segunda ironia: no auge do risco, a Nasa resolve que ela deve ter alguma assistência emocional. Destaca os dois homens que pisaram na Lua, Armstrong e Aldrin. Só que ela nem sabe quem foram eles. Ela já estava na estratosfera: "Vocês são colegas de Jim?".
E nessa pergunta ressoa a indiferença cósmica diante do fato de alguém ter ou não pisado na Lua. Essa indiferença ressoa no espectador, sensibilizado diante do risco de vida por que passaram três astronautas, afinal a troco de quê? Mas ressoa ainda mais no espectador a vontade de que sejam salvos, de que tudo dê certo.
E tudo dá certo, graças à Nasa. Eis algo de relativamente novo no cinema hollywoodiano. O heroísmo, a inteligência, a teimosia não são, em "Apollo 13", apanágio de um herói individual. O filme é coletivista, quase soviético. Todos, naquele momento de emergência, são heróis. Os inventores de um precário sistema de purificação do ar na cabine são tão louváveis quanto Jim Lovell.
Jim Lovell está num ponto indefinido entre a passividade e o heroísmo. A Nasa, entidade impessoal, é na verdade o protagonista de "Apollo 13"; está em luta contra alguém que não é um vilão, mas é igualmente impessoal, o Acaso, o Azar.
Esse "coletivismo" hollywoodiano tem razões de ser. Não há mais "heróis", nem mesmo diretores de filme. A equipe de produção é muito mais importante do que o suposto gênio atrás das câmeras. Um filme tornou-se, mais do que antes, empresa coletiva, junção de talentos especializados. Como na Nasa.
Só que, agora, os Estados Unidos são um país menos militarizado. Menos épico, por consequência. O futuro econômico dos EUA está na indústria de diversões.
A indústria espacial era principalmente militar. Se os japoneses ou os alemães houvessem ganho a guerra, já estaríamos em Júpiter. Felizmente, isso não aconteceu.
A juvenilidade, a ineficácia americana se refletem em "Apollo 13", no momento em que a economia dos EUA se sente mais fracassada, mas inepta para vencer os antigos derrotados, a Alemanha e o Japão. Substituindo metaforicamente a Nasa por Hollywood, os Estados Unidos celebram, mais uma vez, o fracasso -"Forrest Gump" e "Apollo 13" são emblemas desse processo.

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