São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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Calvino no terreiro

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Um misto de fascínio e repulsa acompanha o zapping noturno. Madrugada sem cabo. Pastores e bispos, com os mesmos cacoetes de oratória, erres e esses acariocados, entregam-se de corpo e alma ao combate à "macumba".
Uma mulher dá seu "testemunho" a um pastor. Conta que frequentava um centro "espírita. Diz que fazia "trabalhos" para prejudicar pessoas. Mostra uma foto em que aparece um ritual.
A câmera se aproxima. Há um uma mesa com oferendas e garrafas de cachaça.
"Cachaça, irmã?", pergunta hipocritamente o pastor.
"Cachaça, sim", responde a mulher, repetindo o tom de indignação do entrevistador.
O homem de gravata volta-se para a câmera e insiste na encenação do horror à presença da aguardente no culto da "macumba".
Vou ao banheiro, um pouco atordoado, e lembro-me, no caminho, do vinho. O sangue de Cristo. O padre erguendo o cálice na missa. Faço um scotch e volto ao sofá.
Os pastores continuam na tela. Agora comandam um grande templo. Transe geral. Hinos. Gritos. Homens e mulheres contorcem-se no palco. Estão sendo exorcizados ao vivo.
Pomba-gira, Demônio, Exu. Todos se curvam ao Jesus televisivo. É a Reforma nos tristes trópicos. É Calvino no terreiro.
A avalanche evangélica que toma o Brasil parece ser um dos frutos que o país vai colhendo do seu processo de americanização -ou "americanalhação", como disse outro dia o professor Luiz Felipe de Alencastro.
Uma reportagem da revista "The Economist", republicada pela "Gazeta" menciona pesquisas realizadas nos EUA, país dos evangélicos, cujo lema, estampado nas notas de dólar, é o conhecido "In God We Trust": 95% dos americanos acreditam em Deus, 65% no diabo, 72% em anjos.
Protestantismo e capitalismo formam um par histórico. É possível que o crescimento dos evangélicos por aqui seja uma contrapartida religiosa da ideologia pós-getulista ou da modernização econômica ou do neoliberalismo tardio, como se queira chamar essa fase recente do capitalismo brasileiro.
O catolicismo perdeu com Lula, o protestantismo ganhou com Collor e triunfa com FHC.
É impressionante a quantidade de pessoas públicas que vão ingressando nas igrejas evangélicas. É o Marcelinho, atleta de Cristo, gritando "Jesus!" depois de ganhar o campeonato. São os surfistas de Cristo erguendo pranchas parafinadas. É o ator Jece Valadão -o machão de Cristo?- pregando no programa do Jô Soares.
Os católicos mostram-se pasmos diante do espetáculo. Tentam contra-atacar na mídia. Mas não têm know-how para isso. Parecem falar de um mundo remoto e fantasioso, que vai sendo superado por outro, atual e real.
O pastor promete prosperidade aos miseráveis. O padre acena com o reino de Deus. O pastor tem mulher, usa terno, é um homem comum que experimentou os benefícios da religião. Fala como um político, um empreendedor, um pregador carismático.
O padre veste-se de preto, não sabe o que é sexo, fala baixo e fino e tem sempre um sotaque, ainda que seja difícil identificá-lo.
Mas a Igreja Católica tem um trunfo sob a batina: o papa. E é do pontífice romano que se pode esperar a espetacular reviravolta. Em 97 ele beijará outra vez a terra brasileira. Trará a conversão para os infiéis? Talvez. Mas será um imperdível show de TV.

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