São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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Ataques de romantismo

ROBERTO CAMPOS

"Vá, vá, vá, disse o pássaro. A Natureza humana não suporta tanta realidade."
(T.S. Eliot)

O país sofre de vez em quando ataques de romantismo. Alguns trágicos, outros cômicos, vários tragicômicos.
No governo Collor, houve um surto de romantismo indigenista. Com grande aplauso internacional, pois há escassez de museus antropológicos "in natura", foi criada a reserva ianomâmi. Um território quase do tamanho da Bélgica para pouco mais de 8.000 índios. Trata-se dos maiores latifundiários pobres do planeta, com um espaço de perambulação que exauriria a energia de atletas olímpicos.
Claro que comparados aos maias, aos incas ou aos astecas os ianomâmis são um modelo de inércia cultural. Devem ser preservados como curiosidade antropológica, mas suas contribuições culturais só são perceptíveis para o microscópio superotimista de Darcy Ribeiro. Este acredita que a civilização norte-americana é pouco criativa, porque transplantada, sendo mais original e excitante nossa mistura tropical!
Nesta era de privatização intensiva espocam, aqui e ali, exemplos de romantismo patrimonialista. Citemos dois casos. O ministro das Comunicações -Sérgio Motta- acha que os liberais que reclamam rápida privatização das telecomunicações querem dilapidar o patrimônio nacional. Uma lerdeza patriótica seria preferível à febre privatizante.
É exatamente o contrário. Cada dia que passa, à míngua de investimentos e de excitação tecnológica, nós nos desatualizamos não só em relação à aristocracia telemática do Primeiro Mundo, mas também em relação à gafieira latino-americana. E cada dia que passa, com a privatização compulsória das telecomunicações européias até 1998, maior o volume de apetitosas privatizações no mercado mundial e menor o atrativo bursátil dos dinossauros brasileiros. Eis alguns dados relevantes:
O ministro Motta parece estar cometendo, no tocante à privatização, o erro que Fernando Collor cometeu em relação à estabilização. Este quis rezar uma missa capitalista com sacerdotes socialistas. O ilustre ministro está recitando uma missa privatista com sacerdotes estatistas. Os grandes técnicos de orientação liberal-privatista do MIC -Salomão Wajnberg, Benjamim Sankiewicz e Mauro Porto- estão afastados ou marginalizados. O planejamento estratégico foi entregue a rotineiros estatólatras da Embratel e da Telebrás, que têm pela privatização o entusiasmo de um xiita cantando uma missa de Natal!...
Outro exemplo de romantismo patrimonialista é a reação do Senado Federal à privatização da Vale do Rio Doce, por ser rentável para o Tesouro. É, sem dúvida, a mais eficiente de nossas estatais, precisamente por ter sido exposta à concorrência internacional. No governo Castello Branco, quando foram restabelecidos os direitos minerários da Hanna Mining Company, ilegalmente cassados no governo Goulart, a Vale do Rio Doce, receosa da nova competidora, pretendeu assegurar-se um monopólio (ou pelo menos uma "piccola" reserva de mercado) na exportação de minérios. Foi-lhe negada essa muleta e, guiada pela visão estratégica de Eliezer Batista, a empresa triunfou sobre a Hanna, que acabou se retirando do Brasil.
Daí a dizer-se que a Vale é uma empresa rentável para o Tesouro vai enorme distância. Na realidade, é filha ingrata do Tesouro e mãe bondosa dos funcionários. Ao longo de 51 anos (1943-94), o Tesouro investiu US$ 1,161 bilhão e recebeu dividendos no montante de US$ 1,207 bilhão, ou seja, um rendimento anual de 0,09%!
Dir-se-á que o lucro do acionista majoritário está nos ganhos de capital, pela valorização do patrimônio. Mas esta só se tornará realizável pela privatização. Como é de rigor nas estatais que se prezam, as doações aos fundos de pensão dos funcionários excedem por larga margem os dividendos do Tesouro!
Argumentam alguns senadores contrários à privatização que a empresa atua como agência do desenvolvimento regional. É um dos piores argumentos, pois implica aceitar-se que a escolha de prioridades fique a juízo de tecnocratas não-eleitos pelo povo, em vez de os recursos serem processados pelo Tesouro, segundo prioridades orçamentárias decididas pela classe política.
Há um terceiro exemplo, em que a busca da justiça necessária pode transformar-se em romantização imprudente. O projeto de Fernando Henrique Cardoso visando a esclarecer o estado civil e indenizar as famílias dos desaparecidos durante a confrontação ideológica militar dos anos 60 e 70 é um exercício de fio de navalha entre a confissão arrependida de violência passada e a abertura da caixa de Pandora do revanchismo. Ao remexer mais as cinzas, como pleiteiam alguns, reacenderíamos as brasas...
Será que os desaparecidos eram apenas escoteiros engajados num convescote democrático ou incluíam terroristas, sequestradores e radicais de esquerda que engenhavam a implantação de um socialismo marxista ou fidelcastrista? Comparados ao barbudo do Caribe, nossos militares eram principiantes no Mobral da violência! Cada perda humana é em si mesma um drama e nada cura a dor das famílias. Mas convenhamos que seis, sete desaparecidos por ano, durante o vintênio militar, não têm nada de parecido com o "paredón" de Fidel Castro ou o exílio de 1 milhão de cubanos!
Um último exemplo de romantismo é a nostálgica tentativa de reabilitação das esquerdas e de idéias socialistas, visível no clamor publicitário que cercou a tradução recente dos livros do historiador Hobsbawm ("A Idade dos Extremos) e do politólogo Norberto Bobbio ("Direita e Esquerda). Ambos procuram salvar detritos do terremoto ideológico que se seguiu à queda do muro de Berlim. Leio-os com deleite. Mas a expectativa, que por longo tempo entretiveram, de que o socialismo fosse uma solução viável e humana os transforma em grandes ingênuos, condenados a fazer uma revisão por não terem tido antevisão.
O colapso do socialismo não foi mero acidente histórico, resultante da barbárie da União Soviética ou da perversão de carniceiros como Stálin e Mao Tsetung. Era algo cientificamente previsível.
Os aludidos cientistas sociais teriam certamente chegado a essa conclusão se, ao invés de treslerem a história, tivessem lido os grandes liberais austríacos. Muito antes das fanfarronadas de Khrutschov, já na década dos 20 Ludwig von Mises demonstrava a inviabilidade do planejamento central sem a sinalização dos preços do mercado. E, em 1944, Hayek publicava seu manifesto "O caminho da servidão, no qual demonstrava que, independentemente das intenções dos socialistas, o socialismo contém sementes de autoritarismo, pois o resultado do esforço dos produtores pode ser realocado aos não-produtores por critérios políticos que o sócio-burocrata define. O resultado é iníquo para todos, pelo encolhimento da massa distribuível.
Não terem lido as lições dos austríacos é uma acusação válida também para nossos socialistas tropicalóides, que frivolamente filosofam sobre a falência do neoliberalismo.

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