São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Moedas fortes, moedas fracas

LUCIANO COUTINHO

É hora de avançar na correção do atraso cambial e depois reduzir os juros
As moedas têm qualidades distintas. As duas moedas verdadeiramente fortes são o iene e o marco alemão, pois preenchem três condições fundamentais: são moedas estáveis (inflação muito baixa); conversíveis (são aceitas em troca por quaisquer outras, em geral com cotações favoráveis); são emitidas por países credores (isto é, países que dispõem de um volume de ativos e propriedades no exterior superior às suas dívidas para com estrangeiros).
O dólar americano, uma ex-moeda forte, perdeu essa condição pelo fato de os Estados Unidos terem se tornado uma nação devedora depois de 1985. Um forte e persistente déficit externo -desde o início dos anos 70- obrigou a nação mais poderosa do mundo a se endividar continuadamente (por meio do seu governo, do seu Banco Central, de seus bancos privados e empresas), atraindo capitais externos para equilibrar suas contas.
Nos anos 80, também o déficit interno do governo americano passou a ser crescentemente financiado por estrangeiros. Resultado: o dólar vem se desvalorizando continuadamente, tendo perdido 60% do seu valor frente ao marco alemão e 70% frente ao iene, entre 1985 e o presente.
A qualidade de uma moeda pode ser avaliada pela taxa de risco que um investidor estrangeiro exige para aplicar em ativos financeiros do país que a emite. Quanto mais forte é a moeda, será menor ou inexistente a taxa de risco e, reversamente, quanto mais fraca ela for, maior terá de ser a referida taxa.
O prêmio de risco será, evidentemente, embutido na taxa real de juros necessária para atrair os capitais e considera, ainda, a desvalorização esperada da taxa de câmbio. Assim, os países que têm inflação alta e são obrigados a desvalorizar periodicamente suas moedas precisam oferecer uma taxa de juros suficientemente elevada para compensar essas variações.
Mas, se além disso o país encontra-se endividado e, ademais, incorre em um déficit continuado nas suas transações correntes com o exterior, esse fator-risco tende a crescer, obrigando as suas empresas e governo a pagar juros ainda mais elevados para captar recursos.
Essa circunstância de ter que oferecer juros elevados para financiar o déficit externo representa um sério constrangimento sobre a capacidade de exercer uma política monetária estimulante para a economia doméstica, com juros reduzidos e ampliação do crédito.
Os países de moeda forte, ao contrário, conseguem atrair capitais pagando juros muito mais baixos (inclusive porque suas moedas tendem, em geral, a se valorizar) e dispõem de enorme autonomia para exercer políticas de expansão do crédito e de gastos públicos. Podem, inclusive, se dar ao luxo de provocar déficits fiscais para estimular suas economias.
Entre as moedas fortes e as fracas existem posições intermediárias. São países que controlam a inflação em nível aceitável e geram um superávit comercial suficiente para financiar suas contas externas, se não completamente, pelo menos na medida necessária para não depender de capitais de curto prazo, especulativos e volúveis.
Há, obviamente, uma gradação de qualidade das moedas proporcional ao volume de dívida externa e ao grau de dependência do ingresso de capitais de curto prazo. Mas a experiência internacional é inequívoca: quanto mais um país consegue fortalecer verdadeiramente a sua moeda, tanto mais autônomo será para implementar políticas fiscais e monetárias convenientes para o seu desenvolvimento.
Nesse sentido, para qualquer país em posição intermediária interessa fortalecer sua moeda, conjugando o controle da inflação com a sustentação de um firme superávit comercial para zerar ou reduzir o saldo das transações correntes com o exterior a um nível financiável por investimentos diretos e por empréstimos de longo prazo, a juros aceitáveis (i.e. com baixo prêmio de risco).
Entre 1990 e 1994, uma conjuntura de liquidez muito folgada nos países desenvolvidos ampliou enormemente o ingresso de capitais de curto prazo para os países em desenvolvimento e permitiu a vários deles (especialmente na América Latina) iniciar programas de estabilização baseados em taxas de câmbio fixas ou semifixas (âncora cambial), que logo ficaram sobrevalorizadas e provocaram crescentes déficits em conta corrente, resultantes de desequilíbrios comerciais causados pelo intenso crescimento das importações.
Esses são casos de falsas moedas fortes, pois os países que têm déficits continuados em conta corrente mais cedo ou mais tarde se defrontarão com uma crise de confiança, especialmente se já são devedores importantes (e.g. México).
O Real enquadra-se nessa categoria. Preenche a condição de ter controlado a inflação, mas à custa de um elevado déficit em conta corrente com o exterior (cerca de 3% do PIB), que vem sendo financiado com endividamento e capitais de curto prazo.
Passado o vendaval da crise mexicana, os capitais voltaram em grande escala (i.e. US$ 8 bilhões líquidos nos últimos dois meses). Mas estima-se que o prazo médio de maturação desta nova dívida externa é inferior a dois anos. Além disso, o país é obrigado a oferecer taxas de juros reais extremamente elevadas aos investidores e hoje praticamente não dispõe de raio de manobra para reverter a recessão e estimular o crescimento.
Já é passada a hora de o governo reconhecer nossa real condição de moeda fraca. O momento atual é muito oportuno para avançar na correção do atraso cambial e posterior redução (consistente) da taxa de juros. Essa é a única opção para obter um superávit comercial relevante e retomar o crescimento.
É um caminho mais longo e difícil em matéria de redução da inflação, mas será indubitavelmente mais sólido. Caso contrário, a inflação pode até convergir com certa facilidade para os níveis de Primeiro Mundo, mas continuaremos na ilusão da falsa moeda forte, prisioneira de juros elevadíssimos, recessão, déficit externo e endividamento crescente.

Texto Anterior: Só teoria é insuficiente, conclui debate
Próximo Texto: O Brasil e os morrinhas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.