São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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A ladainha monótona de Huxley

JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando Aldous Huxley finalmente encontrou um sentido para sua vida e formulou-o em termos religiosos, propondo a união mística com Deus como a única solução viável para o homem moderno, seus romances e ensaios foram recebidos com respeito -o respeito devido a uma inteligência poderosa, fundada num leitor onívoro e em constante aprendizado.
Aquilo que mais o caracterizava, no entanto, seu virtuosismo na exposição de idéias e sua sofisticação irônica, logo perderam o brilho e deram lugar ao discurso monótono de um bom homem que repisava temas batidos para uma audiência restrita. A exemplo de tantos outros poetas, como Swinburne e Wordsworth, Huxley fora abandonado pelo espírito e acabara tendo pouco a dizer, mas ainda assim persistia em sua ladainha, convicto da importância de seu apelo. Prova disso são os ensaios que saem agora em tradução sob o título "Huxley e Deus", um conjunto de textos publicados originalmente na revista "Vedanta and the West", da Califórnia, entre 1941 e 1960.
Um dos fatos curiosos sobre Huxley é que, em 1920, ele era tido como um líder dos modernos e, em 1960, mesmo não sendo um reacionário convicto, tornara-se um defensor dos valores tradicionais. Mas, se houve uma evidente ruptura quanto a sua forma de enxergar a realidade, o mesmo não aconteceu com a escolha dos temas, que giraram sempre em torno da "cansativa condição da humanidade, nascida sob uma lei e a outra vinculada". De fato, esse mote, retirado de um poema de Fulke Greville, e citado em "Limbo" (1920), integra a epígrafe do admirável "Contraponto" (1928) e faz parte do argumento de "Reflexões Sobre o Padre-Nosso" (1942), ensaio que compõe a nova coletânea.
Na década de 20, Deus e o misticismo oriental já figuravam, com sinais invertidos, como um dos muitos objetos de análise de seus "romances de idéias": eram um ingrediente a mais para engrossar o caldo de um mundo mal arejado e corrompido, para o qual a máquina de escrever de Huxley forjou, num erro, o termo que lhe soou adequado: "the Human Vomedy". A discussão sobre Deus, de resto, dá fecho a "Contraponto", um retrato perspicaz e tecnicamente moderno (à altura de "Os Moedeiros Falsos", de Gide) dos anos de "l'entre deux guerres", a que se refere Eliot em seu segundo "Quarteto". Spandrell, uma figura demoníaca atormentada, meio Baudelaire, meio Raskolnikov, busca desesperadamente ao final do romance a prova da existência divina. Invoca como testemunha o "Quarteto Em Lá Menor", de Beethoven. A paz extática e inefável das harmonias lídias, no entanto, lhe revelam infelizmente que, se Deus existe, sua beatitude é perfeita demais para ser conhecida pelo homem.
Nesses tempos, Huxley ainda estava sob forte influência de seu amigo D.H. Lawrence (de quem aliás editou a correspondência). Parecia-lhe que os excessos e frustrações da era do jazz se deviam ao artificialismo do comportamento: se obedecêssemos aos instintos naturais, conciliando a submissão do eu às coisas e das coisas ao eu, a fim de encontrar o justo equilíbrio entre (nos termos do autor) São Francisco e Rasputin, seria dispensável a presença divina. Anos mais tarde, a sociedade satirizada por Huxley desaparecera e, com ela, a força retórica do escritor. A insatisfação com a lucidez e a negatividade irônica levaram-no à opção pela "intuição direta do Fundamento Divino", à busca da "Clara Luz Infinita do Vazio" e a outras tantas expressões tão convencionais quanto insípidas que ele usa para descrever o estupor místico da comunhão com Deus.
Huxley tornou-se, assim, a imagem dos personagens de que tanto escarnecera. Ficaram famosas suas experiências com drogas, como a mescalina e o LSD, ingeridas como meio para a autotranscendência. Emparedado em seu individualismo, o escritor dedicou-se à contemplação intelectual passiva a fim de superar o tempo, fonte de todos os males, mas acabou atropelado pelo tempo miúdo da vida concreta, já sem o mesmo faro aguçado para a satirizar as "bêtises" de seus contemporâneos.
Por trás da aparente heresia mística, não conseguiu encobrir o Narciso apático, para quem "ouvir a programação normal das emissoras de rádio, ver os filmes em exibição nos cinemas, ler histórias em quadrinhos (...) são atividades meramente tolas e rudes (...) tão inadmissíveis quanto o linchamento e a fornicação". Sua filosofia perene, além de roubar-lhe o virtuosismo, diminuiu-lhe a voz; sem o auxílio imediato de Deus, o autor renunciou ao atalho necessário da linguagem para chegar ao silêncio e acabou apenas balbuciando duas ou três frases sobre a necessidade da mortificação corporal ou sobre os horrores infernais da idolatria. Para os leitores que souberam apreciar em Huxley um Thomas Peacock de sua época, os ensaios um tanto desalentados sobre Deus e o ocultismo não deixam de causar, certamente, uma ligeira decepção.

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