São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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A útil materialidade da religião

JOSÉ LUIS SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O espírito de uma época pode muitas vezes tornar uma idéia, em si mesma complexa e de difícil demonstração, evidente para os que dele compartilham. O argumento da professora do Leo Baeck College, ensaísta e ex-freira inglesa Karen Armstrong, em "Uma História de Deus - Quatro Milênios de Busca do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo", é uma idéia acessível de modo mais ou menos intuitivo a qualquer contemporâneo -ao menos à medida que sua cultura é determinada pela tríade materialista Nietzsche, Freud e Marx. O que, entretanto, não faz dela uma tese de fácil verificação.
Armstrong avalia que a religião é pragmática. Sua função seria responder ao anseio humano -"demasiado humano", diria Nietzsche- por sentido em um mundo dominado pelo caos. Seu sucesso seria assim proporcional a sua eficácia. Nada há de mais materialista. Nada há, também, de mais difícil de se mostrar, ao menos para alguém sem uma ampla formação histórica, teológica e filosófica, o que não é o caso de Armstrong.
"História de Deus é um livro de história das idéias. O que importa não é a existência de Deus, mas a existência da representação de Deus. Se é o homem quem cria Deus a sua imagem e semelhança, resta ao historiador a tarefa de vincular, em detalhes, a história do criador (o homem) à história da criatura (Deus). E isto Armstrong faz com maestria.
Escritora de estilo erudito e direto, Armstrong preocupa-se sobretudo com as fés monoteístas. Tudo começa com os judeus. Ou, antes, com a narrativa de como Javé Sabaoth, deus pagão dos exércitos, torna-se, durante a Era Axial (800-200 a.C.), o Deus único, em detrimento de todas as outras divindades.
A transformação de Javé é descrita como simultânea ao desenvolvimento do capitalismo mercantilista no Oriente Médio. Armstrong assinala "o dever da compaixão" como um elemento essencial das religiões monoteístas. Este fato, entre outros, explicaria o nascimento do judaísmo como uma forma de reação à desigualdade social, fruto de um capitalismo agressivo.
O nascimento do cristianismo é narrado como um movimento de aproximação entre Deus e os homens, instituído em especial pelos gentios, os não-judeus ou não-escolhidos (por Deus). São Paulo, primeiro escritor cristão, pensava que Jesus substituíra a Moisés (Messias hebreu) como portador da mais nova e fundamental revelação de Deus aos homens.
Há uma diferença essencial entre Jesus e Moisés. O judaísmo era (e é) uma religião monoteísta estrito senso, de modo que conceber o Messias como um ser divino seria uma enorme heresia. O Deus dos judeus, mais do que o dos cristãos, assemelha-se ao Deus de Aristóteles, absoluto em sua indiferença em relação ao destino dos homens. Seja filho de Deus ou sua encarnação, Jesus estava muito mais próximo do ser supremo -e portanto partilhava muito mais de sua divindade- do que poderia admitir qualquer judeu. Jesus, para o cristão, faz a mediação entre a humanidade e o absoluto.
Mas como explicar a excepcional expansão do cristianismo pelo Ocidente? Visto no início como apenas mais uma seita judaica, ele começa por agregar pagãos das parcelas cultural e economicamente mais baixas da sociedade. Mas logo se separa da sinagoga e passa a ser perseguido pelos romanos, poucos afeitos a dissidências e rupturas com a tradição.
A principal hipótese de Armstrong para a eficácia do cristianismo leva em conta a vida política do Império Romano. Mesmo perseguidos, os cristãos continuaram a crescer em número. Com isso, o cristianismo passa a representar a possibilidade de unidade política em um império gigantesco, cindido por diversas seitas e religiões. Esta parece ser a razão mais plausível, diz Armstrong, para que, em 313, Constantino fizesse do cristianismo a religião oficial do Império.
A unificação política também é o argumento alegado por Armstrong para o florescimento do islamismo. Quando o Corão (lei do Islã) foi revelado a Maomé, entre 610 e 632, ano de sua morte, Meca experimentava um enorme crescimento. De nômades paupérrimos, os árabes logo se tornaram comerciantes riquíssimos.
O desenvolvimento capitalista, interpreta Armstrong, foi mais uma vez aqui um poderoso fator de desagregação social e política. Há tempos, os árabes já pensavam ser o seu Deus, Allah, idêntico ao Deus dos judeus e cristãos, mas se ressentiam por nunca terem recebido um Messias. Este foi o papel encenado por Maomé. Político habilidoso, ele conseguiu reunir quase toda a Arábia ao redor de uma única sociedade de devoção a Allah.
Armstrong analisa também o Deus dos filósofos e o dos místicos, além de percorrer o desenvolvimento das fés monoteístas durante a Reforma, a Idade da Luzes e a modernidade. Depois, investiga a chamada "morte de Deus", na virada do século 19 para o 20, e especula sobre o seu destino. Em todos estes casos, como nos anteriores, o mote da análise é a idéia de Deus como criação humana. Deste modo, pode-se inverter o dito e dizer que o futuro, no diagnóstico de Armstrong, ao homem (criador de deuses) pertence.

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