São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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O inimigo cósmico

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

A palavra de Deus pode ser definitiva, mas como o Novo Manual da Redação da Folha exige que se ouça sempre o outro lado, lá fui eu ouvir o que nos tem a dizer o Seu inimigo cósmico. Isto mesmo: Satã, o próprio; popularmente conhecido como diabo, capeta, satanás, belzebu, exu, tinhoso. Não tive de ir, felizmente, à sua residência oficial.
Marcamos encontro em território neutro, longe de igrejas e crucifixos. O cheiro de enxofre, exalado pelo príncipe das trevas, foi uma das provas de sua autenticidade. Outras mais ele daria ao longo da entrevista, exibindo uma onisciência só comparável à do Todo Poderoso. Conversamos em português. Satã, como Deus, fala todas as línguas.

Folha - Antes de mais nada, gostaria de saber como o sr. prefere ser tratado.
Satã - Satã não me desagrada, já me acostumei a ele. Mas Lúcifer me parece mais imponente e eufônico. Além de mais lisonjeiro do ponto de vista etimológico. Não sei se você sabe, mas Lúcifer quer dizer "aquele que carrega a luz", um iluminista. Me chamaram assim por causa de uma confusão com um rei babilônico, citado por Isaías, que tinha este nome.
Folha - E de nomes mais corriqueiros, como diabo, por exemplo, o sr. gosta?
Satã - De alguns, sim; de outros, não. Diabo até que é simpático, embora não me seja tão lisonjeiro.
Folha - Como assim?
Satã - Veja bem: Satã vem do hebraico; significa oponente, acusador. Ao ser traduzido para o grego, virou "diabolos", que quer dizer caluniador. Diabo tem a vantagem de ser o mais popular de todos. Nenhuma das expressões que se referem à minha pessoa fala em Satã ou Lúcifer, mas em diabo.
Folha - O pão que o diabo amassou, com o diabo no corpo, como o diabo gosta, diabo a quatro.
Satã - Nem todas pejorativas, diga-se de passagem.
Folha - Ah, sim. Mas, de qualquer modo, sua reputação sempre foi a pior possível. A propósito, o sr. se considera um injustiçado?
Satã - Como não?! Sempre me identificaram com o mal absoluto, com as trevas. Sempre. Desde quando eu me chamava Ahriman. Sou a mais antiga vítima do maniqueísmo de que se alimentam todas as religiões.
Folha - Quer dizer, então, que o sr. já se chamou Ahriman?
Satã - Ahriman, Belial... Foram tantos nomes que já perdi a conta. Ahriman era o espírito mau do zoroastrismo. Foi, de certa forma, a minha primeira encarnação, o meu primeiro nome.
Folha - O seu nome de batismo...
Satã - Como ousa dizer tal coisa!
Folha - Oh! perdão. Saiu sem querer.
Satã - Desta vez passa. Mas voltemos aos nomes. Ahriman transfigurou-se em Pã, na Grécia. É só atentar para os chifres, a barba e o casco fendido. Só virei Satã a partir do "Livro de Jó", onde sou retratado como um misto de funcionário celestial subalterno e agente provocador. Já fui tanta coisa, meu filho. Anjo a serviço de Jeová, anjo decaído...
Folha - Azazel.
Satã - Exato. Já fui também Namiar, Ashakkou...
Folha - Quando e onde?
Satã - Na Babilônia, bem antes daquele rapaz que morreu na cruz nascer. Me usavam para tudo na Babilônia. Se havia peste, Namiar levava a culpa. Quando alguém era atacado por alguma moléstia rezava contra Ashakkou. Os babilônicos tinham um demônio expiatório para cada tipo de desgraça. Todos eles eram um só: eu.
Folha - O sr. não apenas teve, como ainda tem, uma porção de nomes, mas também um bocado de, como direi, encarnações?
Satã - Antropomórficas e teriomórficas.
Folha - Antropomórficas o leitor médio deste jornal sabe o que são. Para esta entrevista, por exemplo, o sr. assumiu uma forma antropomórfica, humana, por sinal de acordo com as imagens vulgarizadas pelo cinema...
Satã - A propósito, você me acha mais parecido com o Walter Huston ou com o Adolphe Menjou?
Folha - Mais com o Emil Jannings. Não, não, não. Com o Laird Cregar.
Satã - Hum...
Folha - E as encarnações teriomórficas?
Satã - Ah, já fui quase tudo quanto é animal. Serpente, bode, rato, até corvo. Inventam tantas coisas a meu respeito. Na Idade Média chegaram a dizer que havia 7.405.926 demônios empregados por mim. Diziam, ainda, que eu tinha uma mulher, sete filhas mortíferas e uma avó com 900 cabeças.
Folha - O sr. nunca se casou?
Satã - Nunca. Mas tive muitas mulheres, muitas mesmo. Você conhece o livro "Érotologie de Satan"? É de um francês, chamado Roland Villeneuve. Ele conta tudo. Ou quase tudo.
Folha - Com ilustrações?
Satã - Centenas delas. Fique sabendo que eu fui mais retratado do que Deus. E por grandes artistas. Giotto, Bosch, Brueghel, Delacroix, Fragonard, Duerer, Goya, Taddeo di Bartolo. Você já me viu no "Juízo Final" do Cranach? Está no museu de Nancy, uma beleza. Você já visitou a catedral de Orvieto? Lá tem um afresco do Luca Signorelli no qual eu apareço com o maior destaque.
Muitos pintores tinham receio de ofender a Igreja dando um rosto a Deus. Como não tenho quem defenda os meus interesses na Terra, fui retratado de todos os jeitos. No cinema, então, nem se fala. Você se lembra de um ator que tenha encarnado Deus num filme? Só do George Burns, confere? Eu, não. Eu fui representado por Emil Jannings, Walter Huston, Adolphe Menjou, Gérard Philippe, Alan Mowbray, Rex Ingram, Laird Cregar, Vincent Price, Burgess Meredith, Vittorio Gassman.
Folha - Muitos escritores importantes também se interessaram pela sua figura.
Satã - E como não haviam de se interessar por mim? Dante! Milton! Goethe! Thomas Mann! Até Flannery O'Connor! Por falar em Goethe, Mefistófeles é um nome quase tão chique quanto Lúcifer. Você não acha?
Folha - O sr. é bem menos citado na Bíblia do que se imagina.
Satã - Tenho três passagens no Velho Testamento. Nas duas primeiras, como acusador. Apareço acusando Josué e Jó de egoísmo e falsa piedade. Na outra, eu tento persuadir Davi a desmembrar os filhos de Israel. No Novo Testamento minha participação não é muito maior. No "Gênese", sou a serpente. Depois, faço aquelas tentações no deserto. Mas isso não quer dizer nada. No fundo, eu estou em quase toda a Bíblia, pois foi para redimir a humanidade dos males supostamente criados por mim que aquele rapaz veio ao mundo para morrer na cruz.
Folha - O sr. acredita em Deus?
Satã - Claro. Se ele não existisse, eu não existiria.
Folha - Aliás, existe uma corrente de estudiosos das Sagradas Escrituras para a qual Deus e o sr. seriam uma mesma entidade.
Satã - Quem começou essa arenga foram os gnósticos. Segundo eles, eu seria o próprio Jeová, o maligno criador e tirânico soberano deste planeta eternamente infeliz. William Blake foi nessa. No Evangelho de Paulo, sou comparado a um deus.
Folha - Parte das suspeitas se deve ao fato de que o sr. desaparece na hora em que Jó sofre o diabo -ups!- nas mãos de Deus. Estaria ali a prova de que Deus tem duas faces, uma boa, outra má, e esta seria o demônio.
Satã - Demônio vem de "daimon", que é sinônimo de Deus em grego arcaico. Seis vezes essa palavra aparece na "Ilíada" e 11 vezes, na "Odisséia". Tais demônios não encarnavam nem o bem nem o mal, eram apenas seres sobrenaturais. Creio que isso deve ter contribuído para aumentar ainda mais essa confusão toda.
Folha - O inferno existe?
Satã - Existe e é aqui mesmo.
Folha - E aquele inferno dantesco com o qual nos ameaçam depois da morte?
Satã - Dantesco ele é na obra de Dante. O inferno descrito nos Evangelhos, no Apocalipse de João, e que a partir da Idade Média tomou a forma de um subterrâneo horripilante, onde almas penadas são submetidas às mais cruéis formas de tortura física, é puro marketing dos meus desafetos. Se semelhante coisa existisse, não seria obra minha, mas de Deus, a quem reconhecem como Todo Poderoso e juiz supremo de todas as criaturas. Como entender que um Deus, tido como imensamente bom, possa reservar a certos homens semelhante castigo? Além do mais, eterno. Como conceber que os eleitos de Deus se deliciem assistindo do paraíso aos suplícios dos condenados no inferno?
Folha - Qual foi, a seu ver, o menos ofensivo dos infernos imaginados pelo homem?
Satã - Menos ofensivo é a expressão adequada. Do ponto de vista literário, o de Dante é sem dúvida o mais brilhante. A imaginação do Bosch também me impressionou bastante. Mas há uma obra de Buonamico Buffalmaco, no Campo Santo de Pisa, datada de 1330, que causou uma verdadeira revolução na iconografia infernal. Pela primeira vez, o inferno foi pintado como um espaço fortemente organizado, compartimentado, onde as almas penadas padecem suplícios distintos, de acordo com os pecados capitais por elas cometidos. Os orgulhosos são dependurados de cabeça pra baixo; os glutões viram churrasco; os invejosos têm a língua arrancada; os luxuriosos são sodomizados por demônios -assim por diante.
Folha - Que provas o sr. nos dá de que o inferno é aqui mesmo?
Satã - Milhões, bilhões, trilhões de provas. De Genghis Kahn ao último fanático religioso. De Hitler ao bombardeador de Oklahoma. A inquisição foi um inferno. As chamas em Hiroshima não foram ateadas por mim. Calígula, Stalin, Ceausescu, Pinochet, estes, sim, foram príncipes das trevas. Comparado à Bósnia, o inferno é um paraíso.
Folha - O sr. leu o "Dicionário do Diabo", de Ambrose Bierce?
Satã - Nada que o ser humano escreveu me é desconhecido. Achei o dicionário divertido. Nem tudo eu definiria daquela forma, mas fiquei satisfeito com a maneira como ele me apresenta, como o principal responsável pela libertação do homem.
Folha - Como assim?
Satã - Segundo Bierce, ao ser expulso da ordem dos arcanjos, eu teria feito a Deus um último pedido, afinal concedido. Que os homens tivessem o direito de fazer suas próprias leis.
Folha - De todos os ditados envolvendo o seu nome, qual o que mais lhe agrada?
Satã - O diabo ri por último.
Folha - Riu por último.
Satã - Se é por último, o verbo não pode vir no passado.

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