São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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Diabo fascina acadêmicos nos EUA

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

A atração que a questão do demônio exerce sobre o público norte-americano pode ser medida pelo fato de dois livros acadêmicos a respeito do assunto estarem sendo lançados com grande repercussão neste semestre.
Um, "The Origin of Satan" (A Origem de Satã), de Elaine Pagels, é a história do diabo nas escrituras sagradas de judeus e cristãos e suas implicações sociais.
O outro, "The Death of Satan: How Americans Have Lost the Sense of Evil" (A Morte de Satã: Como os Americanos Perderam o Sentido do Mal"), de Andrew Delbanco, é uma teoria sobre a evolução das atitudes dos norte-americanos em relação a Satã do século 17 até agora.
Pagels, professora de religião da prestigiosa Universidade de Princeton, começou a trabalhar com o tema do diabo em 1988, depois que seu marido morreu num acidente de alpinismo e ela quis entender como as pessoas ao longo da história têm lidado com a desgraça e a perda.
Ela se concentrou na tradição judaico-cristã e constatou que os períodos de maior preocupação teológica com o diabo coincidiram com momentos históricos de luta político-ideológica de judeus e cristãos na busca de sua própria definição como grupos.
Satã -em hebreu o "adversário" ou "inimigo"- foi sempre usado para demonizar o "outro", o judeu de seitas divergentes, o pagão ou os cristãos hereges, conforme a situação.
Em geral, o diabo é representado como um anjo caído, numa evidente alusão política: o mais perigoso inimigo não vem de fora, é um colega que já desfrutou da sua confiança.
Pagels diz que o trabalho no livro a alertou para aspectos "perturbadores" do cristianismo, em especial a justificativa ideológica que deu validade social a sistemáticas demonizações do que é diferente.
No final, ela diz que espera ter contribuído para solidificar no cristianismo a tese de que a reconciliação é divina e que a equivalência do "outro" ao mal deve ser evitada pelo verdadeiro cristão.
Delbanco, historiador da não menos importante Universidade de Columbia, concentra sua atenção na maneira como os norte-americanos têm encarado o diabo ao longo dos 375 anos de ocupação européia do subcontinente.
Segundo ele, os puritanos que colonizaram a Nova Inglaterra deixaram a Europa com a convicção agostiniana de que o mal é a ausência do bem e de que não existe a sua encarnação, a figura de um ser satânico.
Mas a vastidão americana e os muitos problemas enfrentados pelos colonos para domesticar a natureza os levaram a desejar a materialização do mal porque assim lhes seria mais fácil livrar-se dele. Foi o período em que, por exemplo, mulheres foram queimadas como bruxas em Salem depois de confessarem sua opção por Satã.
Em meados do século 19, com a revolução industrial, a universalização do ensino, a disseminação da riqueza, a exploração do Oeste, a glorificação do individualismo e da riqueza, o diabo morreu nos EUA.
Como num sistema de fluxo e refluxo, no final do século 19 e início do século 20, a sociedade se sentiu de novo perdida sem um símbolo do mal para ajudá-la a entender as contradições da vida e passou a demonizar grupos. Anarquistas, imigrantes, negros, judeus, nazistas, japoneses, comunistas foram demônios contra quem os EUA sucessivamente se mobilizaram.
Depois que o Senado se transformou na Salem do século 20, o movimento dos direitos civis desnudou a calhordice do racismo, a Guerra Fria acabou e a ideologia do politicamente correto se tornou hegemônica, demonizar qualquer grupo se tornou socialmente proibido.
Mais do que isso, o relativismo absoluto passou a impedir que a própria existência do mal pudesse ser aceita por muitos.
Assim se chegou aos meados da década de 90, quando Delbanco detecta o perigo que ele considera enorme de, por terem negado seu próprio e natural desejo humano de corporificar o mal, os norte-americanos estão prontos para o renascimento do diabo em múltiplas e indiscriminadas encarnações.
Essa tendência às vezes é muito clara quando existe ou um inimigo externo, como Saddam Hussein ou Manuel Noriega, ou um comportamento considerado anti-social por consenso, como o tráfico de drogas (é menos politicamente incorreto demonizar uma atividade do que pessoas).
A reação a esse perigo, na opinião de Delbanco deve ser a busca do "bem objetivo", valores morais que possam ser compartilhados por todos os que vivem em sociedade e que se contraponham aos "satanistas".
O movimento das milícias, por exemplo, atrai um grande número de simpatizantes porque ele não tem problema de lidar com a questão do mal.
Segundo a tese de Delbanco, a necessidade humana de saber que o mal existe e de identificá-lo de forma concreta é tão grande que, quando não resta outra forma de satisfazê-la, as pessoas são capazes de até aderir aos maus porque eles não têm problema de reconhecer a existência do mal.
O atentado de Oklahoma City, os casos Susan Smith, O.J. Simpson e irmãos Menendez são alguns episódios vividos pela sociedade norte-americana em que a questão do mal aparece com toda a crueza e as respostas coletivas para explicá-la são insatisfatórias.
O vazio existencial resultante dessa frustração é um perigo que precisa ser enfrentado pelos filósofos e pelos líderes morais do país.

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