São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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O GURI E O SOL

CARLOS HEITOR CONY

Eu fizera os exames pouco antes do Carnaval, os resultados saíram na quarta-feira de cinzas, o pai voltou do Rio Comprido com a notícia, eu fora aprovado entre os primeiros, só não fora o primeiro porque perdera pontos na prova de leitura -minha dicção era defeituosa, o dr. Pedro Ernesto ainda não havia operado o freio que prendia a minha língua.
Ele estava exultante, não tanto pelo sucesso do filho mas pelo próprio sucesso. Fora ele que, nos últimos cinco meses, me preparara para os exames.
Tudo por causa do diabo de minha dicção. Eu não pudera, até então, frequentar regularmente os colégios. Além de criar problemas com os colegas -que caíam em cima de mim, maltratando-me, fazendo com que eu me habituasse à solidão que no fundo eu ainda não desejara, os professores desanimavam de me ensinar a pronunciar certos ditongos, perdiam a paciência, chamavam o pai, aconselhavam a que me arranjasse outro colégio.
Depois de várias experiências, sempre malsucedidas, o pai deixou-me ficar em casa, vez ou outra me passava uns exercícios, explicava alguma coisa de história ou de geografia, mas sem método, sem finalidade, acho que adiava o problema, sem saber exatamente o que faria comigo.
Minha idéia de ir para o Seminário foi providencial. Tia Alzira entrara com o enxoval, ele fez os cálculos e viu que com alguns meses poderia me colocar em condições de prestar os exames, os mesmos, por sinal, que habilitavam ao Colégio Militar e ao Pedro 2º, apenas com alguma coisa a mais relativa ao catecismo e à história cristã.
Até então eu não tivera escolaridade normal. Aprendera a ler e a escrever -e só. Fazia contas nos dedos -e geralmente erradas. Com nove para dez anos, já era um retardatário na vida.
Havia agora o desafio. Os exames exigiam um nível igual ou superior ao do curso primário completo. Nem havia tempo para me inscrever num intensivo de admissão, muito usado na época, pois o primário era insuficiente para habilitar o aluno ao ginásio.
Até que o pai chegou em casa com um quadro-negro sob o braço. Comprara na Casa Cruz, na rua Ramalho Ortigão, a mesma loja onde comprava os papéis de seda para fazer os balões.
Era um quadro-negro pequeno, guardo até hoje as dimensões: noventa centímetros por cinquenta. Tinha um cordão verde-amarelo na parte de trás para ser pendurado na parede, como um quadro comum.
Trouxe também uma caixa de giz e alguns livros, uns cadernos de caligrafia, um apagador, um compasso. Comunicou-me que, a partir do dia seguinte, eu acordaria sempre às sete horas e teria aulas até as dez. Ele precisava sair às onze. Depois do almoço, das duas às cinco, eu deveria estudar e fazer os deveres de casa. Aos domingos, quando ele não ia para o trabalho, as aulas seriam da hora em que eu acordasse à hora em que fosse me deitar.
Eu não reclamei, mas minha mãe reclamou por mim daquela severidade, mas o pai tinha razão: eu estava atrasadíssimo em relação aos meninos de minha idade, ele examinara o programa da admissão solicitado pelo Seminário, era terrível, rigorosíssimo, os padres sempre tiveram fama de puxar pelos alunos, eu teria de fazer, em cinco meses, o equivalente aos cinco anos do primário para me habilitar à admissão de um curso ginasial truculento.
Como sempre, ele nada faria sem antes apelar para a diversidade de seus truques. O quadro-negro, o giz, o apagador, os cadernos, tudo fazia parte de uma técnica especial e inédita até para ele: "De como ensinar em casa um filho retardado a fazer exames". Era, na vida dele, a primeira experiência no gênero, mas parecia que nunca fizera outra coisa -tantas regras ditou para mim e para ele.
Além do equipamento básico de uma escola, do horário estipulado, ele redigiu regras suplementares que copiou com sua melhor letra (à qual não faltaram borrões) colocando o papel na porta do meu quarto, a fim de que, a cada manhã, ao acordar, eu tomasse conhecimento do que faria na vida em geral e naquele dia em particular.
Uma dessas regras obrigava a me preparar física e mentalmente para as aulas que ele daria na sala, na sua escrivaninha escura. Eu deveria acordar, lavar o rosto, escovar os dentes, pentear-me, colocar uma espécie de uniforme, sapato e meia, arrumar minha pasta com os livros e cadernos do dia, postar-me ao lado de sua escrivaninha, verificar se o quadro-negro (pendurado na parede onde antes ficara um barômetro estragado que nunca funcionou) estava corretamente apagado, o apagador limpo.
Feitas essas obrigações, deveria esperar por ele, que vinha logo, só que de pijama, a cara cansada pelo sono interrompido. Afinal, ele sempre chegava tarde, raramente voltava antes da meia-noite, e acordar àquela hora da manhã devia ser um bruto sacrifício para ele, que sempre dizia que o melhor sono era quando os outros acordavam.
A lição começava com as correções nos exercícios que mandara fazer na véspera. Usava um lápis grosso bicolor, vermelho numa ponta, azul na outra. Assinalava os erros com a ponta vermelha, e quando o erro era exagerado, riscava a página toda com um enorme zero, escrevendo dentro dele a palavra zero a fim de não me deixar terreno onde pudesse plantar uma dúvida ou contestação.
Em alguns casos mandava-me ao quadro-negro, repetia o problema ou a questão e queria ver como eu me saía. No geral, era paciente. Tinha algum método, pois, afinal, entrara para a Prefeitura como professor concursado, mas dar aula, enfrentar a burocracia de uma escola, aturar garotos sem imaginação, seria para ele uma violência.
Como nada sabia fazer sem entusiasmo, logo nos primeiros dias começou a ficar empolgado com o ofício. E tinha idéias que, infelizmente, pelo resto da vida, nunca mais encontrei em outros professores que passaram pelo meu caminho.
Tirante o catecismo e a história cristã, que frei Tiago, vigário da matriz de Nossa Senhora da Guia, me ensinava, as matérias eram português, aritmética, geografia, história do Brasil e ciências. Em cada uma delas punha uma técnica. Em geografia, por exemplo, logo nas primeiras aulas, havia a questão dos pontos cardeais, Sul, Norte, Leste, Oeste. No livro que me comprou ("Elementos Básicos de Geografia da 1ª Série" - Coleção FTD) havia um guri com uma roupa igual à dos meninos dos tempos de Marcel Proust, geralmente montados em estranhíssimos velocípedes, de rodas altíssimas.
Eu passava horas olhando aquele menino, os braços estendidos em cruz, uma seta indicando onde o sol nascia, onde o sol se punha, e, ao lado, saindo das setas básicas, a rosa-dos-ventos mostrando que o Leste ficava na frente e o Oeste nas costas do guri.
Pelo menos naquele tempo, a ilustração era suficiente para que uma geração de meninos em todos os quadrantes do globo terrestre soubessem onde era o Norte e o Sul, bastando ficar de frente para o sol no momento em que este nascia e, ao abrir os braços, poder se orientar, na certeza de que atrás dele ficava o Oeste.
Para o pai era pouco.
Na véspera da lição, ele deixou escrita no quadro-negro uma mensagem para mim: "Amanhã, às cinco e meia, impreterivelmente, partiremos de casa para os altos do Sumaré a fim de assistir ao nascer do sol e com ele aprender a orientação sobre o planeta Terra. Traje: esporte. Atenção: acordar meia hora antes da saída, fazer a higiene, tomar café e apresentar-se à sala na hora aprazada. PS: haverá merenda para o aluno".

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