São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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O GURI E O SOL

CARLOS HEITOR CONY

Naquela época eu ainda não conhecia do pai o suficiente. Mesmo assim, com aqueles detalhes, com aquele advérbio que ele tanto apreciava (impreterivelmente), eu comecei a suspeitar o tipo de homem que era. A referência à merenda era inevitável. Sendo glutão, não poderia perder um passeio matinal ao alto do Sumaré, a subida na fresca da manhã abrindo o apetite, a beleza do espetáculo, ver o sol nascer em cima da baía, levantando-se das águas, encharcado de mundo, era demais, e eu precisaria me postar virado para o sol, os braços em cruz, e o pai então diria que na minha frente não estava apenas o sol, mas o Leste, o Oriente com seus mistérios, seus beduínos e camelos, minha mãe gostava de usar um sabonete, Madeyras del Oriente, na caixa havia uma odalisca com o véu tapando o rosto, e lá estariam Ali Babá e seus quarenta ladrões, com a caverna abarrotada de tesouros, tudo isso ao som de "Em Um Mercado Persa, de Kettelby. E, às minhas costas, além do Cristo Redentor (objeto mais identificável), eu teria o Oeste, os mocinhos e bandidos do Cine Real na rua Barão do Bom Retiro, mais longe, Paris com Maurice Chevalier cantando "Gigolette", de Franz Lehar, e Roma, com o papa Pio 11, rosto macerado, óculos redondos de intelectual, sofrendo pelos pecados da humanidade. E na linha saída de minhas mãos teria o Sul e o Norte, sim, seria uma lição inesquecível.
Saímos de casa na hora marcada, ele apertou o passo, tomamos os velhos terrenos no final da rua Citiso, era um dos acessos ao Sumaré, ele levava um cajado que não sei de onde tirou e o farnel com as guloseimas que providenciara na véspera: uma língua afiambrada, comprada na Confeitaria Cavê, fatias de presunto e queijo prato, uma latinha de patê já aberta, fatias de pão de forno, duas garrafas térmicas, uma com café, outra com limonada, cachos de uva moscatel, frutas cristalizadas -provisão que daria para alimentar a família por uma semana.
A isso tudo ele chamou de "Expedição Geográfica nº 1" -o que muito me alegrou, pois era sinal de que na certa haveria outras. Ficamos lá em cima algum tempo, o sol nasceu, ele me fez cumprir a cerimônia dos braços abertos, fez-me repetir umas cinco vezes onde ficava o Sul e o Norte.
Depois, como que para checar, ou para aproveitar a montagem da cena e também confirmar o que já sabia, ele próprio fez o mesmo e se certificou que o Leste ficava na sua frente, o Oeste etc.
Findo o quê, o apetite estava impreterivelmente aberto e sentamo-nos na grama para devorar o farnel. O dia nascia muito bonito, mas eu não sentia fome. Belisquei aqui e ali -mas admirei a esganação do pai. Com seu canivete (canivete famoso, acompanhou-o a vida inteira, quebrava-lhe os mais inesperados galhos) cortava finas fatias da língua afiambrada. E de fatia em fatia devorou-a toda, com café, pão e limonada.
O sol já começava a esquentar quando descemos do Sumaré, o suntuoso farnel reduzido a farelos, a lição aprendida para sempre -e para sempre lembrada.
Mas nem tudo foram excursões para ver o sol nascer, nem tudo eram fatias de língua afiambrada da Confeitaria Cavê. Houve momentos trevosos, em que saía até pancadaria. Sobretudo na hora das contas, no quadro-negro. Certa vez, numa extensa divisão de frações, havia um erro no resultado que eu obtivera, o pai me avisou do erro, mas queria que eu o descobrisse sozinho e o corrigisse. Fiz e refiz as contas inúmeras vezes mas não atinava com o erro. Até que ele perdeu a paciência, o erro estava na minha cara, eu não o via. Agarrou-me pela nuca, encostou meu rosto em cima de um oito fatal e me fez apagá-lo com o nariz.
Na mancha produzida pelo meu nariz, no borrão de giz que ficara no lugar do oito, havia também lágrimas, pois eu chorava, não de dor, nem de humilhação, mas pela incapacidade de perceber onde errara.
Corrigi o oito, botei o sete no lugar e continuei a chorar. Minha mãe veio ver o que estava acontecendo, não acreditou quando viu o filho com o nariz sujo de giz, como um palhaço que se prepara para entrar no picadeiro. Tomou minha defesa, acusou o pai de fascista, o pai reclamou de minha falta de atenção, declarou-se desesperado, o tempo corria e eu não revelava progressos, falou tanto que ficou emocionado, parecia que ia chorar -e eu sabia que a tristeza dele não era pelo meu erro mas por ter-me castigado daquela maneira.
Naquele dia, no meiozinho da tarde, ele entrou pela casa inesperadamente. Não avisara que viria tão cedo. Exibia um envelope verde, branco e vermelho (cores nacionais da Itália) com entradas para o Circo Sarraceni, que era então o mais famoso do mundo. Revelei falta de caráter dizendo que não poderia ir, tinha muitos deveres para fazer, estava muito atrasado.
O pai declarou que eu não podia perder o circo, seria uma aula de história natural, haveria leões, elefantes, girafas, bichos que eu nunca vira. Ir ao circo, naquele dia, equivalia a cumprir um dever escolar. Que eu fosse me arrumar. Pouco me aproveitou essa aula de história natural. Ignorei os bichos, sentia-lhes a morrinha, ficava torcendo para que eles saíssem logo do picadeiro. Do circo inteiro só guardei a imagem de um palhaço que não tinha muita graça mas fez uma coisa espantosa para um palhaço: chorou porque a moça do trapézio cuspiu (ou fingiu cuspir) em sua cara branca -a cara mais que branca dos palhaços.
Se dava vexame nos números, até certo ponto alegrava o pai com as redações. Havia um quadro na parede da sala que o acompanhava desde os tempos de moleque em São Cristóvão, desde os tempos do tal Absalão: um menino levando um feixe de lenha para uma casa à beira de um rio, a fumaça saindo de uma chaminé, um quadro campestre de autor francês.
A pedido dele, fiz umas cinco ou seis composições sobre aquilo, variando o nome do menino e do lugar, ora o menino era um órfão explorado pela madrasta cruel, ora o menino estava perdido na floresta e encontrava uma casa na qual pediria abrigo, eu me virava como podia.
Ele corrigia aqui e ali, riscava frases, colocava enormes interrogações nos trechos em que ficara faltando alguma coisa, mas sempre deixava escrito a lápis azul um "muito bem", um "bravos".
Deu-me certa vez um tema livre: "Escreva sobre o que quiser. Cuidado com as concordâncias. Não se esqueça de que os advérbios atraem os pronomes".
Passei a tarde em cima de um caderno de folhas muito brancas. A tinta que ele me destinara era vermelha, marca Sardinha, como sempre. A pena era nova.
Eu não tinha um tema, olhava o papel branco, nunca esqueci essa página em branco, sabia que seria gostoso escrever alguma coisa nela. Não sabia o quê. Pensei em repetir a dose e recontar a história do menino com o feixe de lenha, a casinha à beira do rio, a chaminé deitando fumaça. Era um tema íntimo, recorrente, no qual me sentia à vontade.
De repente, tive vontade de escrever sobre um gigante que vinha todas as noites e me trazia bombons e balas. Um gigante que fazia coisas terríveis que me amedrontavam mas que eu gostava dele porque, no final de tudo, ele sempre tirava de um alforje de couro um brinquedo e me mandava brincar. Um gigante que morava longe, onde moram o vento e as coisas do mundo, que apesar de morar tão longe nunca deixava de chegar, em horas estranhas, mas sempre chegando, porque sabia que eu precisava dele.
O pai corrigiu fartamente, riscou com traços vermelhos uma concordância abominável, substituiu um "medonho" por "terrível" e achou razoável a composição. Disse que eu precisava ler o Zé de Alencar, depois o Machado, mais tarde o Eça.
Pensou um pouco, desconfiou que nem Machado nem Eça seriam apropriados a um seminarista, falou em Vieira, em Bernardes, tinha uma edição de "A Nova Floresta", falou, falou, falou -e não compreendeu.

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