São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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A curva da estrada

MODESTO CARONE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assim que o médico da família confirmou que a mãe estava morta o pai e os filhos saíram do quarto e desceram as escadas até a sala de jantar. A mesa estava posta e a luz que jorrava pelas janelas banhava as flores, as louças, os copos e os talheres de cerimônia. Surpresos e ofuscados tanto o pai como os filhos não se sentaram logo, preferindo num primeiro momento ficar em pé ao lado dos seus lugares. Fazia muito tempo que não se viam e a oportunidade da reunião era um estímulo para vencer a distância e alegrar-se com isso, daí que passado o embaraço inicial sentiram as vozes aumentar de volume à medida que os assuntos vinham à tona com a naturalidade de um afago. A consciência de conversarem debaixo das paredes da morta intensificava neles o desejo de desfrutar uma companhia inesperada e embora os interesses não coincidissem eles contavam com a possibilidade de um contato harmonioso. Como de costume o pai fazia as honras da casa e tratava de dar aos filhos a atenção adequada. Isso não o impedia de se emocionar a todo instante reconhecendo neste ou naquele, quando não no conjunto, a própria imagem refratada. Essa inflexão explica que não tenha acompanhado os agentes funerários à presença do corpo: certamente pressentia que o encontro importava mais que o pormenor de praxe. Acresce que o movimento dos convivas ganhava em vivacidade e que as travessas fumegavam sobre os aparadores de prata. Sem dúvida residia ali o ponto em que a confraternização se consolidava e à vista das carnes, dos acompanhamentos e dos vinhos de boa extração ninguém em paz consigo mesmo deixava de se enternecer. De qualquer modo foi ao se servirem e comerem que eles perceberam entre si o círculo formado e se persistia alguma fresta ela vinha da cadeira da mãe, cujo espaldar de ferro dominava a ponta da mesa. Aos poucos porém os pratos e as garrafas foram-se esvaziando e sem que se notasse não sobrava no lugar mais que um brilho de metal sob o sol já distante. De fato as horas passavam como sombras e o crepúsculo escorria pela vidraça quando o pai resolveu se levantar. Erguendo o corpo em silêncio ele depôs o copo e o guardanapo e fez menção de subir as escadas. Os filhos compreenderam o sinal e apanharam as rosas que enfeitavam os vasos da mesa. Estavam todos reconfortados e os gestos não acusavam o menor indício de agitação, por isso seguiram os passos do pai e uma vez no quarto colocaram as flores aos pés da cama. Com efeito essa era a melhor escolha, porque depois dela restava apenas a tarefa de recompor aquele dia e a casa onde haviam realizado sua última homenagem.

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