São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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Os tempos 'catastróficos' dos sistemas sociais

GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa certa altura de "Poder e Secularização", Giacomo Marramao, às voltas com um debate entre dois atores, refere-se a uma formulação de um deles como "um convite a nuançar num modo diverso e a articular analiticamente os termos". Nuançar e articular. Esses dois termos exprimem perfeitamente o espírito da sua análise. Nela, exercita-se a capacidade de explicitar distinções sutis e, no mesmo passo, encontrar as articulações dos termos distintos.
Está em jogo a exaustão de categorias centrais da modernidade, a começar pela de progresso. Mas que ninguém espere desse especialista italiano em filosofia política mais uma lamentação sobre a "crise dos paradigmas". Seu estudo vai muito mais fundo e tem um foco muito preciso: as transformações (no sentido exato de mudanças de forma) do tempo histórico no mundo moderno, vistas pela ótica anunciada no título. Trata-se de examinar articulações entre poder e secularização como dois termos decisivos para o conhecimento dos rumos da modernidade. Interessa como eles se imbricam e se distinguem, com referência aos modos de experiência do tempo neles envolvidos.
Embora de leitura fascinante, não se trata de livro fácil. Seu autor aprecia as nuances finas e as vias indiretas. "É sabido como as vias transversas são as únicas que conduzem à verdadeira raiz da atualidade", escreve ele. O princípio básico de construção do texto é dado por uma figura de retórica que Marramao nomeia seguidamente: a hendíadis. Nela, dois termos aparecem como substantivos ligados no mesmo nível quando se quer exprimir que um é atributo do outro (como "via o campo e o verde" em vez de "via o campo verde"). Obtém-se assim um maior relevo do atributo. No título do livro, os temos relacionados são "poder" e "secularização". Portanto, a idéia deve ser a de "poder secularizado", servindo a hendíadis para ressaltar a dimensão secularizadora. Mas isso é insuficiente, como indica o subtítulo "as categorias do tempo". É preciso introduzir a questão do tempo, para melhor qualificar o atributo. Obtemos então, como tema central do livro, "poder e tempo da secularização", com ênfase nesta segunda expressão. E nessa ênfase advém de que o bom entendimento dessas relações, e do próprio poder (portanto da política), exige um enfoque metapolítico. Pois não se trata simplesmente de nomear os atributos políticos que vão dando conteúdo ao conceito de modernidade. São as próprias formas da modernidade e não suas qualidades, seus atributos, que estão em causa. E é delas que o poder retira o seu sentido.
Talvez por isso não convenha falar de "tempo do poder" nos mesmos termos em que se fala de "tempo da secularização". Um dos méritos do livro consiste justamente em mostrar que a temporalidade do poder (no caso, a sua orientação caracteristicamente moderna de prospecção planejadora do futuro, no sentido de tratá-lo como já disponível para o controle) não pode ser pensada sem considerar-se o processo mais amplo, de transformação de concepções sagradas em seculares; e que estas transformações envolvem uma persistência e condensação de significados a partir de um núcleo meta-histórico. Caso típico é o da conversão do complexo significativo "redenção" no de "liberação".
Marramao coloca a secularização no centro do seu exame da configuração da modernidade. Para fazê-lo, polemiza com aqueles que encontram esse núcleo nos processos constitutivos da auto-afirmação e de consciência de si dos sujeitos individuais; naquilo que denomina "laicização". A secularização segue uma outra via. De fato, quando vista da ótica da ação individual, ela aponta para a heterodeterminação da ação. Sua contrapartida é a normatividade e não, como no caso da laicização, a autodeterminação.
O trânsito histórico dos complexos significativos originalmente ligados ao mandamento sagrado até a norma secular envolve a referência às categorias políticas fundantes da modernidade: progresso, revolução e liberação. Todas elas pressupõem o poder e remetem à categoria basicamente política do antagonismo. Isso se dá porque a civilização ocidental moderna está configurada para sempre buscar o que está para além dela -no espaço e, sobretudo, no tempo. Daí sua constante projeção sobre o futuro. Daí também a importância da sua orientação para uma transcendência secularizada. Tudo isso desemboca, em Marramao, na afirmação decisiva de que "normatividade, no Ocidente, não significa nunca ordem estático-orgânica: pressupõe e requer conflito e instabilidade".
Ao propor o antagonismo como forma por excelência da política, Marramao é levado a reler alguns clássicos do realismo político, especialmente Carl Schmitt e Max Weber (que também comparece, claro, pela fundamental associação que faz entre secularização e racionalização do mundo moderno). Por outro lado, ao apontar o acelerado incremento da complexidade e portanto da instabilidade sistêmica na etapa contemporânea (na "modernidade desdobrada", pois não cabe nessa análise a noção de "pós-modernidade"), ele reexamina os grandes teóricos dos sistemas na análise política: Talcott Parsons e, especialmente, Niklas Luhmann. Do exame dessas duas vertentes, ele retira uma caracterização instigante da forma da política no mundo contemporâneo e das orientações práticas que ela pode suscitar.
No lugar da simples contraposição entre um tempo cíclico "arcaico" e um tempo linear "moderno", a análise de Marramao propõe uma espécie de superação de ambos, na temporalidade "catastrófica" dos sistemas sociais contemporâneos altamente complexos. Assim como não aceita sem mais a caracterização da gênese da modernidade na auto-afirmação e na autoconsciência individuais, Marramao também redefine, a partir da sua análise da soberania em Carl Schmitt e da seletividade sistêmica em Luhmann, a idéia de decisão soberana do detentor do poder. Não é sobre as ações, por incontestáveis que sejam, nem sobre os agentes, por maior que seja sua supremacia, que incide sua atenção. O que em Carl Schmitt é a decisão soberana do campo especificamente político converte-se, nas mãos de Marramao, no evento decisivo, "catastrófico", que leva a um desenlace das perturbações e a uma mudança de estado no interior de um sistema hipercomplexo (portanto afetado por sua instabilidade intrínseca, que elimina todo recurso a uma concepção linear de um tempo previsível e controlável).
Há nisso uma espécie de recuperação da dimensão temporal do presente, que, no tempo progressivo da modernidade, é sacrificado às tendências futuras que conferiam sentido à história. O evento catastrófico é gerador de novas formas, mas não está inscrito numa sequência teleológica, não aponta para nenhum fim ou estado supremo de um desenvolvimento linear. Não é buscando antecipar o futuro que se dará conta do presente (como supõe a idéia de progresso), mas procurando no presente os sinais da gênese de novas formas -entendendo-se forma como "campo relacional de estruturas dotado de uma lógica própria". É este, hoje, o ato político por excelência. E é com base nisso que Marramao busca perspectivas para a esquerda.
A questão é: se em condições de alta complexidade não há mais como invocar um sentido da história e a capacidade de previsão e intervenção antecipadora se desfaz, que dimensões de poder podem ser objeto de disputa nos antagonismos sociais? Mais exatamente -e esta é a questão prática central de Marramao-, quais novas formas assumem esses antagonismos? Na realidade, o que agora está em jogo não é mais o poder, no seu sentido de prospecção controladora do futuro, mas são diretamente os antagonismos nas suas singularidades locais. Nesse esquema analítico, a noção de antagonismo responde, no plano político, à noção de perturbação no plano do sistema social como um todo. Ambas remetem ao caráter inevitável do conflito e da instabilidade. E ambas são portadoras de novas formas, devendo portanto estar no centro da atenção.
O problema, sustenta Marramao, consiste em deixar de procurar "novos atores" e, por outro lado, em ultrapassar as concepções que insistem em restringir o político ao seu campo institucional. Trata-se, em suma, de aprender a detectar as formas socioculturais e não só econômicas ou político-institucionais dos novos antagonismos. Esta é a questão, a ser enfrentada por quem se dispuser à recomendável aventura de enfrentar este livro instigante no conjunto e repleto de ricas análises no detalhe.

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