São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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A voz do guru

Roteirista publica entrevista com o Dalai Lama

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Fora a sua colaboração como roteirista com alguns dos principais diretores do cinema -Buñuel, Louis Malle, Milos Forman, Jean-Luc Godard, Carlos Saura, Andrzej Wajda, Hector Babenco-, Jean-Claude Carrière é muito conhecido pela adaptação para o teatro do poema épico indiano, o "Mahabharata", que foi dirigido por Peter Brook e teve sucesso no mundo inteiro.
Depois de ter estudado longamente o hinduísmo para adaptar o "Mahabharata", Carrière foi à Índia em 1994 para encontrar o principal representante do budismo, o Dalai Lama. Do encontro resultou o livro "A Força do Budismo" (La Force du Budisme), que o Dalai Lama assina com o roteirista, entrevistado pela Folha em sua casa em Paris.
*
Folha - Na introdução ao livro, o sr. diz que procurou evitar na relação com o Dalai Lama tanto um respeito paralisante quanto um desrespeito inútil. Comente o seu modo de proceder?
Jean-Claude Carrière - No que concerne ao respeito paralisante e ao desrespeito inútil, trata-se de uma atitude que aprendi no meu campo profissional. Sempre que vamos abordar um tema de outra cultura, como o "Mahabharata", por exemplo, devemos evitar tanto a veneração quanto a irreverência extrema.
Queria encontrar um personagem verdadeiramente representativo do budismo, e não há ninguém mais representativo do que o Dalai Lama. Nós nos vimos primeiro, e ele depois me pediu que eu escrevesse, explicando exatamente o que desejava discutir e a maneira como o faríamos.
Acredito que ele tenha se decidido a fazer o livro devido às cartas que enviei e também porque eu sou mais velho do que ele. Interessava ao Dalai Lama falar com um representante do Ocidente, alguém que estava disposto a viajar para a Índia e conhecia a tradição indiana. Nós inicialmente definimos os temas. Claro que estávamos preparados para as surpresas, os desvios.
Sobre o método de trabalho, há ainda duas coisas. Para o budismo, a uma questão sábia, a resposta deve ser também sábia, e a uma questão infantil, a resposta deve ser infantil. Se eu der a uma questão sábia uma resposta infantil, eu me torno ridículo. Se a uma questão infantil eu der uma resposta sábia, será inútil. Encontrar o nível em que nós íamos falar era portanto muito importante, porque a nossa conversa estava destinada a se tornar pública.
Tanto o Dalai Lama quanto eu tínhamos em vista a transmissão. Na Índia, esta se faz frequentemente por intermédio de um guru, por via oral, um guru que em geral só fala para uma ou duas pessoas. Era preciso achar uma outra forma. Para encontrar o nível, levamos mais ou menos uma hora.
Folha - Foi rápido.
Carrière - Era como se durante aquela hora nós estivéssemos ajustando os ponteiros. A segunda coisa que quero dizer é que no budismo tudo se liga. Se eu colocasse uma questão sobre o meio ambiente, ele deveria considerar o budismo inteiro para responder.
Assim, eu logo me dei conta de que não podia deixar de tratar do budismo propriamente dito no livro. Não podia me contentar com a idéia de só trocar idéias com o Dalai Lama sobre o mundo de hoje. Portanto, eu propus a ele o seguinte: "Temos que abordar no livro as questões de doutrina, questões que o senhor conhece muito bem, eu um pouco, e o leitor simplesmente desconhece. Mas, para ganhar tempo (nós só tínhamos três semanas), proponho que eu não o interrogue sobre estas questões e colha as informações necessárias nos livros anteriormente publicados pelo senhor". Ele imediatamente aceitou, o que me permitiu ganhar tempo.
Folha - O sr. foi à Índia para saber o que o budismo pode nos ensinar. Gostaria que dissesse o que nós, ocidentais, podemos aprender.
Carrière - Existem muitas atitudes possíveis em relação ao budismo. Primeiro, a adesão total. Se você decidir que vai pertencer a uma comunidade budista, você deve mudar de vida e entrar na universidade, onde ficará 12 anos. Deve inicialmente aprender três línguas, o sânscrito, o pali (as duas línguas em que os textos antigos foram escritos) e o tibetano. São muitos anos para aprendê-las, além da parte que o budismo chama especulação e corresponde a tudo que não é a revelação, ou seja, o que o Buda disse. A especulação é a penetração em domínios do saber que a revelação não abordou. Você pode, também, ficar só com que lhe for interessante.
Folha - O sr. poderia falar sobre os conceitos fundamentais do budismo?
Carrière - Há um certo número de idéias inventadas pelo budismo que só pertencem ao budismo, como, por exemplo, o carma -o peso dos nossos atos-, o nirvana, a reencarnação... O Dalai Lama, o budismo atual, privilegia algumas idéias por considerar que podem nos ajudar. Posso citá-las, se você quiser...
Folha - Por favor, diga.
Carrière - Há quatro idéias. Duas que são clássicas e duas que são modernas. Entre as clássicas, existe a impermanência: tudo passa, nada permanece -nem mesmo o budismo.
Folha - E a segunda idéia?
Carrière - A segunda idéia que o budismo privilegia é a interdependência, o fato de que é impossível separar as coisas, de que não se pode separar o dedo da mão, a mão do corpo, o corpo do mundo etc. Se nós nos perguntarmos a que isto nos leva, imediatamente pensaremos no meio ambiente, no perigo que ameaça o planeta, precisamente porque a espécie humana se considera superior às outras. O budismo considera que somos um dos dentes da engrenagem, um dente particularmente perigoso, porque ameaça destruir a engrenagem e, com isso, se destruir.
Além das duas noções clássicas, a impermanência e a interdependência, existe a noção da não-conversão. Quando as pessoas perguntam ao Dalai Lama se devem ou não se converter ao budismo, ele responde: "Não, fique como você está. A sua tradição deve ser uma coisa boa, do contrário ela não seria uma tradição".
A quarta noção é uma nova noção de pátria. O Dalai Lama, como você sabe, teve que deixar o Tibete, exilou-se na Índia, mas, lá chegando, a primeira preocupação dele não foi a de criar um exército para reconquistar o seu país e sim abrir uma escola, ele queria sobretudo que a língua tibetana não se perdesse, nem a poesia, nem a música, que se perpetuaram graças a ele. O Dalai Lama foi o primeiro homem de Estado que situou a cultura como uma arma de sobrevivência, uma arma incomparável. Compreendeu que a cultura é uma arma mais forte do que o exército.
Folha - O Dalai Lama considera que nós hoje vivemos um período melhor. Uma da razões deste otimismo é o fim da Guerra Fria, outra é que a ideologia da não-violência tem marcado alguns pontos, a exemplo do que fez Arafat. Ele é muito otimista?
Carrière - Muito não. Ele pertence a uma tradição otimista. A base do budismo é o otimismo. Ele parte da revelação de que a condição humana é sinônimo de sofrimento, de que o homem é frustração, doença, envelhecimento, morte, porém afirma que há uma maneira de escapar ao sofrimento, e a questão é saber encontrar esta maneira. No caso do Dalai Lama, o otimismo é contrabalançado pela lucidez do personagem.
Folha - O budismo preconiza a rejeição do desejo. Os ocidentais são formados para insistir no desejo. Os surrealistas falavam na onipotência do desejo. A psicanálise ensina a conhecer o próprio desejo e perseguir a sua realização. Como explicar a moda do budismo no Ocidente?
Carrière - Não se pode dizer que o budismo rejeite totalmente o desejo. O desejo de ser agradável a você, por exemplo, é um verdadeiro desejo para o budismo. O budismo valoriza a ação, ele nos leva a auxiliar os outros. Tudo depende do sentido em que a palavra desejo é utilizada. Quando se trata do desejo de consumir, que a publicidade procura despertar, o Dalai Lama diz que é o mal do Ocidente, pois é um desejo insaciável, leva à frustração e à destruição do planeta. Já a noção de desejo, tal como ela foi utilizada pelos surrealistas, não é contrária ao budismo. O desejo surrealista é, por um lado, um desejo de conhecer uma realidade surreal e, por outro, de estar à escuta do mundo e de transformá-lo. No que diz respeito ao desejo, no sentido sexual, a questão é tão problemática no budismo quanto nas outras religiões.
Não cheguei a falar muito sobre isso com o Dalai Lama. Existe uma confusão entre o amor e o sexo que nunca foi resolvida. Felizmente, aliás. Do contrário, eu não teria trabalho. As histórias de amor são essenciais à produção cinematográfica.

ONDE ENCOMENDAR
"La Force du Budisme", de Jean-Claude Carrière (ed. Laffont, Paris) pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011/231-4555, São Paulo)

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