São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um livro estranho e admirável

FRANK KERMODE
ESPECIAL PARA "THE NEW REPUBLIC"

Jack Miles é um crítico culto e original. Numa época em que tais dotes beletrísticos são geralmente tidos por irrelevantes ou mesmo danosos à verdadeira tarefa da crítica, ele sabe o que é ser um escritor. Críticos de dons excepcionais por vezes se decidem a escrever livros singulares, e é isto o que fez Miles. Um resenhador dificilmente deixará de se preocupar com tal estranheza, mas, antes de ceder a essa tentação, há que dizer que "Deus - Uma Biografia" é uma obra admirável e absorvente.
Se é que é possível dizê-lo sem sombra de menosprezo, Miles está envolvido num jogo de regras bastante claras: está escrevendo a vida de Deus "simplesmente enquanto protagonista de um clássico da literatura mundial, a saber, a Bíblia hebraica". Supõe-se que a personalidade de Deus possa ser discutida exatamente nos mesmos termos em que falamos sobre a personalidade de Macbeth ou Hamlet, isto é, compondo um retrato mais completo a partir das indicações do texto.
Miles cita o crítico shakespeareano A.C. Bradley como caução para seu procedimento -pouco lhe importa que o livro de Bradley tenha já cem anos e tenha sido frequentemente condenado por desviar a atenção dos textos para as "personalidades". O livro continua influente porque seus procedimentos básicos parecem próximos do que executamos a cada dia: formamos estimativas sobre a personalidade das pessoas a partir de dados incompletos. Parece portanto bem razoável imaginar a partir do texto da peça qual espécie de pessoa Macbeth "de fato" é: supersticioso, submisso à mulher, corajoso, cruel e assim por diante. E é isto, em linhas gerais, o que Miles faz com Deus.
Há alguns problemas. Deus não é um ser humano, muito embora, no começo da história, queira que os seres humanos sejam feitos à Sua imagem (e aos montes). Em algumas ocasiões, Deus parece comportar-Se como um de nós, como se estivesse com raiva ou ciúmes. Esse antropomorfismo era um problema para os antigos comentadores; a saída estava em dizer que o texto divinamente inspirado havia sido acomodado às limitações do entendimento humano, de modo que, quando Deus estendesse o braço, sentisse remorso ou praguejasse, não se deveria imaginá-Lo ativo e apaixonado à maneira humana; tais expressões eram apenas a consequência inevitável da necessidade de falar a Seu respeito em termos humanos.
Mas essas desculpas não servem a Miles. Seu Deus é aquele que está no texto, e se este diz que Deus transformou a mulher de Lot numa estátua de sal, os historiadores e teólogos podem tergiversar e alegorizar o quanto quiserem: pelas regras do jogo de Miles, Deus fez exatamente aquilo. Se o texto diz que Deus conta mentiras, sente impulsos maldosos, perdoa e comete trapaças repreensíveis e genocídios em série, então Deus de fato fez tudo isso. E se o texto deixa de dizer que Deus é casado, então Ele não é.
O fato de o texto conter visões diferentes e nem sempre compatíveis de Deus, aliás chamado por vários nomes, só torna a coisa mais engraçada. Onde os estudos históricos detectam versões variantes, Miles percebe uma "ambivalência divina".
Israel é chamado de esposa de Deus numa passagem e de esposo de Deus em outra, mas Miles recusa-se a entender isso como metáforas. De um modo ou de outro, seu Deus é "obcecado pela reprodução" -daí a circuncisão, por meio da qual se apossa do pênis de Abraão- e pelas "manifestações físicas de fertilidade reprodutiva: polução noturna, menstruação e toda a gama de uniões sexuais lícitas e ilícitas", que tanto espaço ocupam no "Levítico". Mas, ao contrário de Baal, seu rival, o Senhor Deus não toma parte direta em acasalamento algum -o que talvez explique porque o culto de Baal foi uma "tentação perene" para os israelitas.
A ordem dos livros na Bíblia hebraica (ou "Tanakh") não é a mesma que a do Antigo Testamento cristão, e Miles segue a primeira. Nela, há uma continuidade mais ou menos perfeita do "Gênesis" a "2 Reis" ("a história deuteronômica", como é chamada -o que aliás prova que Miles recorre à crítica histórica e linguística quando lhe parece conveniente). Ao longo dessa narrativa, percebe-se a personalidade de Deus passar por várias fases. De início, ele se apresenta como guerreiro, legislador e parte envolvida num pacto, numa aliança. Alianças podem ser (e são) rompidas; mas Deus não pode dar o passo seguinte e cortar Suas relações com Seu povo, uma vez que, se o fizesse, aboliria a Si mesmo.
Conforme a história continua, Deus começa a ver-Se como um pai para Seu povo, obrigado a ser misericordioso e a proteger os fracos. É importante para o jogo de Miles que não se interpretem essas mudanças como uma evolução das idéias humanas sobre Deus, mas como mudanças no caráter do próprio Deus. Há mais ou menos um século, havia filósofos que argumentavam que Deus deveria estar evoluindo ao mesmo passo que Sua criação; a divindade dá mostra de adaptação cada vez mais refinada conforme se avança na Bíblia -desistindo dos sacrifícios de sangue, por exemplo. Mas Miles está dizendo algo de diferente: seu Deus não tem existência alguma fora da Bíblia hebraica, e se Ele se desenvolve, isso só ocorre no sentido em que Hamlet se desenvolve rumo a uma calma resignada depois de muita ira.
O Deus de Miles chega a uma espécie de crise de meia-idade e, num momento registrado em "Isaías 39", descobre o amor, assunto sobre o qual não mostrara nenhum interesse até então. Pode-se bem dizer do Deus de Miles que, como Suas criaturas, "Ele vive Sua vida passo a passo" e é "lamentavelmente incapaz de prever Seu fim em Seu começo".
A despeito das mostras de misericórdia crescente, Ele é profundamente incoerente, sendo ao mesmo tempo o pastor do "Salmo 23" e o matador de criancinhas do "Salmo 137"; e, mesmo quando envelhece, continua incapaz de compreender algumas das situações por que passam Suas criaturas, notavelmente em Sua disputa com Jó. De acordo com Miles, o "poder nu e cru" de Deus não leva a melhor: Jó ganha por pontos e Deus fica bastante embaraçado ao descobrir que é o que Jó pensava a Seu respeito.
Abatido por essa reviravolta inesperada, Deus desinteressa-Se de Si mesmo, e não fala mais nenhuma palavra por todo o resto da "Tanakh" -ainda que seja resgatado da extinção pelo "Cântico dos Cânticos", os "Provérbios" e o "Livro de Rute". Tratando a "Tanakh" tal como trataria qualquer outra narrativa, Miles não se importa com a previsão, no "Livro de Rute", do nascimento de Davi (que já aconteceu há tempos), ou dificuldades semelhantes. Se lêssemos o material na ordem proposta pela Bíblia cristã, teríamos um resultado diferente; mas Miles gosta do livro exatamente como está; não está tentando compreender Deus tal como Ele poderia ser fora de Seu texto.
Se a Bíblia fosse um romance (um romance bem estranho, como aliás os há em grande número) e não um texto sagrado, haveria mais o que falar sobre o engenho interpretativo de Miles. Mas talvez eu tenha enfatizado demais as qualidades lúdicas de seu livro, dando a impressão de que não se trata de algo sério. Mas seu livro é muito sério. É um grande feito imaginativo tentar ver de um ângulo pouco costumeiro um livro que normalmente enxergamos através de tantas lentes de distorção e compreendemos através de preconceitos difíceis de descartar por estarem conosco desde a infância.
Não é necessário concordar com essa apresentação da personalidade de Deus para sentir o efeito vivificante do esforço de Miles para baseá-la sobre o que está escrito, sem recorrer a artifícios para encaixar Deus em alguma noção prévia a Seu respeito. Trata-se de um novo tipo de fundamentalismo. À sua maneira peculiar, este livro pode ser tão útil aos estudiosos da Bíblia quanto "O Declínio da Narrativa Bíblica", de Hans Frei, mostrou ser, 20 anos atrás.

ONDE ENCOMENDAR
"God - A Biography", de Jack Miles (ed. Alfred A. Knopf) pode ser encomendado à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, tel. 011/285-4033, São Paulo). Será lançado no segundo semestre de 96 no Brasil pela Cia. das Letras.

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

Texto Anterior: 'Pocahontas' transforma crônica de atrocidades em fábula infantil
Próximo Texto: A palavra divina
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.