São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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Por que me sinto em casa

GILBERTO DIMENSTEIN

Moro na fronteira do Harlem, bairro negro e hispânico no norte de Manhattan, a três estações de metrô do Central Park. Lá vivem 300 mil habitantes e imperam gangues envolvidas no tráfico de drogas. Interessado pelos meus novos vizinhos, fui à biblioteca pública e encontrei uma pesquisa que só reforçou uma sensação desde que cheguei a Nova York -a sensação de que estou em casa.
A mais prestigiada revista de medicina dos Estados Unidos, "The New England Journal of Medicine", mostrou que um jovem em Bangladesh tem mais chance de chegar aos 40 anos do que seu colega do Harlem. A renda anual per capita americana é de US$ 24 mil. A de Bangladesh, uma das mais miseráveis regiões do planeta, é de US$ 200.
Numa outra pesquisa, no Hospital do Harlem, descobriram que a imensa maioria dos adolescentes baleados que deu entrada no pronto-socorro já tinha perdido algum familiar assassinado. Detalhe: há lugares ainda mais violentos do que o Harlem em Nova York.
Sinto-me em casa porque vejo o repeteco do absurdo brasileiro: a miséria e a violência urbana convivendo com a opulência. Todo dia, 40 crianças são feridas ou mortas por armas nos Estados Unidos. Há detectores de metais nas escolas públicas. O país mantém 800 mil pessoas na cadeia.
Sinto-me em casa quando, a cada esquina, me pedem esmola. Não raro se vê alguém comendo restos do lixo -aliás, as ruas de Manhattan, endeusadas pelos turistas/sacoleiros brasileiros, estão mais sujas do que as de São Paulo.
No Brasil, movido pelo sentimento de culpa judaico-cristão, sempre colocava a mão no bolso. Confesso: mais por mim do que pelo suposto beneficiário. Aqui, estabeleci uma regra: só dou esmola a quem pesar menos do que eu. Mendigo gordo também já é demais!
A má distribuição de renda, a crise nos hospitais e nas escolas públicos têm lugar privilegiado na mídia americana. Na política, o tema é a desconfiança cada vez maior nos políticos. E, para completar, mais um ponto em comum: como aí, o presidente também quer a reeleição.
PS - Uma pequena diferença: em Brasília, dominada pela sofisticação tucana, eu ouvia mais gente falando inglês.
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Fiz uma enquete entre altos funcionários de bancos que acompanham a crise do Econômico. Todos foram unânimes: a julgar pelos indícios veiculados pela imprensa, se o caso tivesse ocorrido nos Estados Unidos dificilmente não haveria aumento da população carcerária. Se os responsáveis escapassem, seriam perseguidos pelo mundo.
Aliás, no Brasil a toda hora quebram escolas, hospitais e programas assistenciais, colocando vidas em risco. Curioso como o baronato brasileiro se comove com a quebra de um banco.
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Soube da baixaria de Fernando Collor na entrevista ao SBT. Ele esperneou contra uma reportagem feita em parceria com Josias de Souza. Nós obtivemos informação segura sobre suas crises de depressão e os remédios ingeridos. A reação à reportagem mostra que se ele não tomava remédios para garantir sua estabilidade emocional (que, de fato, ingeriu), deveria tomar.
Na Presidência, Collor não se comportou como presidente. E, agora, não sabe sequer se comportar como ex-presidente. Por sinal, nenhum ex-presidente realmente sério iria morar em Miami, aliás, a amplificação urbana da Casa da Dinda, o lugar ideal para o casal.
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Lançaram aqui uma camiseta "teológica. É a síntese bem-humorada e politicamente incorreta de como cada religião reage à desgraça. "When shit happens, ou "Quando a merda acontece,
o católico diz: 'Eu merecia'
o budista: 'Não é uma ilusão?'
o protestante: 'Se eu trabalhasse mais, não aconteceria'
o judeu: 'Por que sempre comigo?'
o hindu: 'Já aconteceu em outra encarnação'
o islâmico: 'Se acontecer, faça um refém'
o rastafari: 'Let's smoke this shit'.
A Igreja Universal do Reino de Deus anda expandindo seus domínios também entre os miseráveis daqui -e tem até programa na TV local com um pastor carioca prometendo milagres em portunhol. No país do marketing, vão acabar lançando uma nova versão da camiseta: "Templo é dinheiro".

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