São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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Os desaparecidos

O projeto do governo resgata a memória dos que morreram nos porões da nossa pátria
JOSÉ CARLOS DIAS
Defendi centenas de presos políticos durante a ditadura. Vi as marcas das torturas nos corpos de meus clientes. Muitos tinham aderido à luta armada, outros foram presos, embora se opondo à guerrilha. Durante tantos anos de angústia, sofrimento e medo, nós advogados vivemos até o desafio de nos transformarmos em detetives à procura de sobreviventes e tornamo-nos, tantas vezes, defensores de memórias.
O governo Fernando Henrique responde à expectativa de tantas famílias de desaparecidos políticos e da sociedade que se opôs ao regime militar ao enviar um projeto ao Congresso estabelecendo a responsabilidade do Estado brasileiro pela vida daqueles que estavam sob sua custódia e foram mortos durante a ditadura.
José Gregori, chefe de gabinete do Ministério da Justiça, foi o encarregado de coordenar os estudos para a elaboração do trabalho, e o fez com paciência, obstinação, talento e habilidade. O projeto vem sendo apoiado e merecendo reparos e algumas contestações. Um dos que apresentam objeções é o grande jurista Fábio Konder Comparato.
Poucas vezes tenho ousado discordar de Comparato, que teve a oportunidade de se manifestar sobre o assunto na Folha e em trabalho encaminhado à Comissão Justiça e Paz de São Paulo. Faço-o agora, por imperativo de consciência.
O jurista se reporta a uma resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 18 de dezembro de 1992, que concerne à "proteção de todas as pessoas contra os desaparecimentos forçados" e que impõe aos Estados-membros deveres de três ordens, segundo o jurista: "O dever de investigar e apurar a exata ocorrência dos fatos com a identificação dos responsáveis, o dever de processar e julgar criminalmente estes últimos sem possibilidade de anistiá-los, bem como o dever de indenizar as vítimas ou as suas famílias".
Segundo a interpretação de Comparato, muito embora não se trate de uma convenção, teria força de atos "heteronormativos". Refere-se, em seguida, à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, onde a questão é tratada. A convenção é também do ano de 1992.
Cita, por fim, a nossa Constituição, que é de 1988, para a qual a tortura será considerada pela lei como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. E prossegue Comparato, fazendo analogia: "Se assim é em relação à tortura, com maior razão deve ser em matéria de desaparecimento forçado de pessoas, crime sem dúvida mais ignominioso do que a tortura".
Discordo do amigo e mestre. É princípio basilar no Direito Penal que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu" (CF, art. 5º). Assim, jamais poderiam ser revistos os atos praticados em razão da anistia, mesmo que os termos da respectiva lei se opusessem ao que vem expresso na Constituição posteriormente promulgada.
Igualmente inadmissível é a pretendida analogia em Direito Penal quando desfavorece o réu. Entende o mestre que, se a tortura não pode ser objeto de anistia, com muito mais razão o desaparecimento forçado não deverá sê-lo, pois que seria conduta mais reprovável.
Tal afirmação contraria o princípio da reserva legal que impera no Direito Penal moderno, formulado a partir de Feuerbach: "Nullum crimen, nulla poena, sine praevia lege" (não há crime, não há pena, sem prévia lei). Tal princípio inaugura o Código Penal em seu artigo 1º, e tem sido enxovalhado, sistematicamente, durante as ditaduras.
Ainda na avaliação do que sejam os chamados crimes conexos que são mencionados na lei da anistia (lei nº 6.683), não posso concordar com Comparato, pois que, lembrando como foi a gestação da lei, toda a discussão travada e que dividia os debatedores era sobre a abrangência da anistia aos autores das condutas que guardavam qualquer conexão com os delitos políticos, ou seja, as praticadas pelos policiais e militares que enfrentaram os inimigos do regime. A lei trata de conexão que, obviamente, não é de natureza processual, mas sim conexão legal, material.
Se parece oportuna e pertinente a observação de que o direito à verdade deve ser reconhecido e proclamado, e mesmo porque a história não pode ser censurada, nem por isso se justifica o estabelecimento do juízo de conhecimento sem a cominação de uma pena.
Na área penal nada há a ser feito, seja porque a anistia abrangeu os delitos políticos e os que lhe estão conexos, ou seja porque, pela ocorrência da prescrição, as condutas tipificadas como crime estão com a punibilidade extinta, passados mais que 20 anos.
Uma coisa é a responsabilidade criminal do agente público, outra a responsabilidade do Estado por ato ilícito de seu preposto. A importância do projeto é que o Estado se diz responsável pela morte, fixa uma indenização que, uma vez aceita, não implica renúncia da família em exercer o direito de ir ao Judiciário.
E isso porque se trata de norma de império da Constituição, segundo a qual nenhuma lesão ao direito individual pode deixar de ser submetida ao Judiciário, e aí então se poderá pleitear uma indenização que atente para todas as circunstâncias pessoais e factuais.
Entre tais circunstâncias, sem dúvida podem estar presentes as que envolveram diretamente a morte, como nível de suplício, sofrimento, tortura impostos à pessoa falecida, assim como a angústia, o desespero, danos patrimoniais e morais que atingiram a família. A prova poderá ser produzida com toda a sua amplitude, a verdade buscada.
Não se discutirá, então, o direito à reparação, mas o seu montante, de acordo com todos os dados coligidos. Se o agente não pode mais ser penalmente responsabilizado, pode sê-lo no plano civil, solidariamente com o Estado do qual é o preposto.
O avanço conseguido com o projeto reconstitui a dignidade, não enxuga as lágrimas, mas resgata a memória de tantos quantos morreram nos porões de nossa pátria. Foi um ato de coragem, sem a perda da consciência de que a pátria ainda convalesce e o pós-operatório merece cuidados.

JOSÉ CARLOS DIAS, 56, advogado criminalista, foi presidente da Comissão Justiça e Paz de São Paulo (1979-82) e secretário da Justiça do Estado de São Paulo (governo Montoro).

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