São Paulo, terça-feira, 5 de setembro de 1995
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Descobrindo a criança

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA-Certa vez perguntaram a Bernard Shaw o que achava da multidão. E ele: "Gosto ou desgosto de quem tem uma cara só". Sua frase vale para quase todas as multidões. De fato, falta às grandes aglomerações uma cara.
No Brasil dos últimos anos, gestou-se, porém, um tipo de multidão que desafia a lógica do raciocínio de Shaw. Refiro-me à infância de nosso país. As crianças brasileiras têm como que um rosto coletivo, uma feição comum. Horrorosa, diga-se.
Nossos garotos compõem um agrupamento de traços fortes, bem definidos. Uma multidão cujas digitais estão por toda a parte: ao pé do semáforo, no assalto à mão armada; rente ao meio-fio, na prostituição infantil e até nas fábricas, no trabalho precoce.
A feiúra da infância do país é consequência de anos de descaso. Somos movidos pelo desejo de chegar ao Primeiro Mundo. Mas ainda não nos demos conta de que não sairemos do lugar se não nos dispusermos a levar nossas crianças junto.
No último final de semana, Fernando Henrique Cardoso anunciou um projeto que toca na essência do problema. Brasília quer reprogramar os gastos com educação, priorizando o ensino básico.
Propõe-se a criação de um fundo federal, para obrigar Estados e municípios a investirem mais em escolas primárias. Prevê-se a melhoria da remuneração dos professores. Planeja-se ainda treiná-los pela TV.
Reuniram-se em Brasília o presidente, o ministro Paulo Renato (Educação) e os governadores. Autor da idéia do encontro, o governador Cristovam Buarque (PT) exulta: "Foi a primeira vez que um presidente e todos os governadores se reuniram para discutir educação."
Cristovam tem razão. Mas, visto sob outro ângulo, o encontro expõe a origem do desastre educacional brasileiro. Se o Estado cumprisse a sua obrigação, a reunião de governadores perderia o sentido. O próprio fundo que se planeja criar seria desnecessário.
De resto, para mudar a cara disforme da infância, é preciso que a sociedade também mude. A começar pela elite. É tolice mandar o filho bem-nascido para estudar na Suíça e continuar sonegando impostos aqui. Cedo ou tarde ele terá de voltar. E será assaltado pelos que não puderam tomar o mesmo avião.

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