São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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Bilhete simples

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Não desanime, as coisas podem ser piores: pense, por exemplo, que daqui a 50 anos vamos ter um presidente que frequentou as escolas dos anos 90.
A “boutade”, de uma tira americana, é boa para os Estados Unidos e ainda melhor para o Brasil.
Candidatando-se a mercado emergente, em busca de uma carteirinha que permita ao menos dar umas voltas pelo clube das nações mais modernas, o Brasil esteve vinculado, nos últimos dias, a alguns números vexaminosos.
Para começar, um relatório do Banco Mundial conferiu ao país o título de campeão da desigualdade, com uma concentração de riquezas assustadora: os 20% mais ricos têm 32 vezes mais dinheiro do que os 20% mais pobres.
Depois, uma reportagem da Folha mostrou que também estamos em plena forma no quesito violência. São 21 homicídios anuais para cada 100 mil habitantes. Número dez vezes superior ao de Gana, um miserável país africano, com renda anual por habitante abaixo de US$ 500.
Agora, durante a semana, ficamos sabendo que, se ainda não estamos no grupo dos sete mais ricos, já pertencemos ao G-7 do analfabetismo.
Sim, os brasileiros estão em sétimo lugar em quantidade de analfabetos, com 19 milhões. Somos superados por Índia, China, Paquistão, Bangladesh, Nigéria e Indonésia. Mas estamos em melhor situação do que Egito, Irã, Sudão e Haiti. O que já é um consolo, não é mesmo?
Isso se levarmos em conta o singelo critério adotado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, que reputa como alfabetizada uma pessoa capaz de ler e escrever “um bilhete simples”... Bem, o que será um “bilhete simples” para o IBGE? “Tô almossando” vale?
Se o critério for um pouco mais rigoroso - cinco anos de escola, como querem os educadores - a quantidade mais do que dobra: 40 milhões, segundo estimativa do diretor da Ação Educativa, organização não-governamental criada no ano passado.
Os números traduzem com crueza um drama que os sucessos formais do Plano Real, as discussões das reformas constitucionais e o nhenhenhém neoliberal e neo-social parecem ter tirado da agenda nacional: o apartheid social instalado no país.
O assunto frequentou a chamada “opinião pública” há pouco tempo, mas acho que ficou cafona. Pobre, como se diz, é mesmo “uó”. E, afinal, para que mencionar um tema tão chatinho diante das exibições de modernidade que o governo FHC vem dando à platéia perfumada que circula sorridente pela avenida Europa? Alguém pode se engasgar com o fois-gras.
Se não se pode querer do presidente o milagre de resolver tudo ao mesmo tempo agora, deve-se, ao menos, esperar que os gestos em relação à área social venham a ter no seu governo a mesma determinação e o mesmo empenho daqueles que acontecem na área econômica.
É verdade que FHC anunciou um plano que prevê uma série de investimentos, entre outros, em educação e saúde. Mas poucos deixaram de ter a sensação de tratar-se de mais uma declaração de boas intenções. O tempo dirá.
Até lá, rezemos pelo Haiti.

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