São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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O cheiro forte da morte

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ensaísta de fina estampa e professor universitário dos mais ativos, Silviano Santiago vem produzindo, como ficcionista, desde a década de 60, uma obra dotada de força crítica. Publicou, entre outros, a coletânea de contos, "O Banquete e os romances "O Olhar, "Em Liberdade, "Stella Manhattan e "Uma História de Família.
A inquietação intelectual parece constituir um dos traços mais marcantes da trajetória deste mineiro, nascido em 1936, na cidade de Formiga. Quando todos esperavam um novo romance, que viesse sedimentar sua singularidade dentro da narrativa brasileira contemporânea, Silviano retorna à poesia.
O aparecimento de "Cheiro Forte, entre outras coisas, desperta a atenção sobre um aspecto pouco conhecido de sua produção literária, que é a poesia. Silviano já tinha escrito poesia, como, por exemplo, em "Crescendo Durante a Guerra numa Província Ultramarina" (76) -mas foram livros datados e alguns de tiragem limitadíssima.
Em outras palavras, "Cheiro Forte pode ser considerado sua estréia como poeta. É o próprio Silviano quem autoriza esta leitura ao se apropriar de uma epígrafe de Kafka: "Meu sexto filho parece, pelo menos à primeira vista, o mais pensativo de todos. Cabisbaixo e no entanto palrador. Por isso, o contato com ele não é fácil (...) Sem ser doente -tem antes uma saúde muito boa- às vezes cambaleia, sobretudo no crepúsculo, mas não precisa de ajuda, não cai.
É uma epígrafe das mais precisas. Os versos de "Cheiro Forte permanecem de pé. Trata-se de um livro maduro em sua simplicidade, equilibrado entre a devassa do eu e as demandas do outro. O único problema me parece a inclusão do posfácio, cuja interferência desnecessária quebra a atmosfera trágica e lírica do livro. Realmente, "Cheiro Forte só cambaleia no crepúsculo.
A primeira parte do livro é composta de pequenos textos, nos quais o corpo está sempre siderado pela morte. Poderíamos dizer que se trata de um único e longo poema, formado por pequenos poemas que ora se abraçam no frágil círculo do cotidiano, ora se acotovelam e gritam a plenos pulmões, na tentativa de construir um espaço de solidariedade.
A idéia do poema longo é reforçada pela ausência de títulos e pela recorrência de certas imagens. Em algumas passagens, "Cheiro Forte tangencia o "Poema Sujo. Mas enquanto para Ferreira Gullar a memória é o centro de sua matéria poética, constelação de tempos e vozes cambiáveis -"Muitos dias há num dia só (...) ou "O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra"-, para Silviano Santiago a memória pesa sobre o indivíduo: "Memória/ (de um, de outro e outro mais):/ esse poder anônimo/ sobre mim.
O lirismo de "Cheiro Forte é traiçoeiro. As imagens centrais vão sendo desdobradas -avenida, aeroporto, boca, buraco, cheiro, corpo, desejo, faca, fogo, grito-, numa espécie de "origami", sensual e trágico, cuja figura derradeira é a morte.
Muitas vezes, onde julgamos encontrar o corpo, nos deparamos com a mordida da morte. O desejo reponta aqui e ali ao lado dos sobressaltos da velhice. Do apartamento, o indivíduo assiste à sociedade forçando a porta de sua intimidade: "Se grito à noite/ ninguém escuta/ (não sou dado a conversa/ com anjos)./ Alguém escuta:/ (me diz o porteiro)/ o vizinho faz perguntas/ indiscretas./ Se grito, por que grito?. Ou atitudes desdobradas para o seu contrário: "No saguão do aeroporto/ pessoas descobrem umas às outras/ e, com palavras ríspidas, constroem a solidariedade. Fatos em trânsito, a passagem dos anos, os movimentos da memória.
A segunda parte, "No Túmulo Apedrejado da Menina, ainda é marcada pela morte. Outra vez ela se apresenta de modo traiçoeiro, chega pelas mãos da beleza: "compartilho/ compartilho a curiosidade pela beleza:/ milhares infinitos milhares/ minúsculos diamantes em pó/ broche brinco pulseira anel/ brilham brilhando em luz goiana/ planaltina joalheria/ no ferro-velho. Inspirado no acidente com o césio ocorrido em Goiânia, este poema consegue superar as dificuldades naturais contidas no tema. Silviano explora com extrema habilidade a musicalidade quase tátil, tamborilante das palavras. Beleza medusada pela morte.
Neste livro, Silviano Santiago recupera a imagem da dobradiça já utilizada, se não me engano, no romance "Stella Manhattan, configurando uma "poética. "Com formão e tacape/ você abre/ os olhos do óbvio./ Eles te ensinam:/ Isto é uma dobradiça!/ Sem ela/ não há porta.
A leitura de "Cheiro Forte é similar ao movimento de uma dobradiça. Cada um dos 40 poemas encerra e se abre para um sentido novo, cada página virada desemboca no corredor de um mesmo poema e a cada porta aberta o cheiro da morte penetra mais forte.

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