São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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Deficiente cobre guerra para ser livre

DANIELA FALCÃO
DE NOVA YORK

Viver três anos como correspondente estrangeiro no Oriente Médio em plena Guerra do Golfo já é aventura suficiente para muita gente. Para o jornalista norte-americano John Hockenberry, 39, a conquista tem sabor ainda maior.
O motivo: desde os 19 anos, Hockenberry anda de carreira de rodas por causa de um acidente de carro que o deixou paraplégico.
Agora, o jornalista virou notícia nos EUA ao lançar o livro "Moving Violations" (violações em movimento), contando sua experiência nos últimos 20 anos em uma cadeira de rodas.
"Todo mundo me pergunta por que resolvi me expor a uma situação que, mesmo pessoas sem limitações físicas, evitariam a todo custo. Não sei se tenho uma resposta para isso, mas acho que fui movido por uma necessidade imensa de provar que era independente", disse Hockenberry, em entrevista à Folha.
Para ele, essa extrema valorização da independência é uma coisa tipicamente americana. Ele acha que precisou "chegar ao topo, aonde a maioria das pessoas não ousaria ir, para descobrir que não há nada de vergonhoso em pedir ajuda, que depender dos outros não é necessariamente um defeito.
"Sempre achei que ficaria famoso quando fui trabalhar na televisão, mas nunca fui abordado na rua por isso. Depois que lancei o livro, sou parado pelo menos uma vez por dia. É inacreditável, nunca pensei que minhas histórias pudessem interessar tanto", conta.
No mês que vem, o livro atravessa o Atlântico para ser lançado em Londres e, em seguida, na Austrália.
Bem humorado, extremamente agitado e falador, Hockenberry diz que antes do acidente era um adolescente muito tímido.
"Eu era um verdadeiro 'nerd' (babaca). Sempre fui gozador, mas não abria a boca nunca, guardava as piadas para mim. Depois do acidente, fui obrigado a mudar, por uma questão de sobrevivência. Se continuasse mudo na cadeira de rodas, morreria de solidão."
Hoje, Hockenberry tem um programa semanal de reportagens especiais na rede ABC. Está de casamento marcado para o fim do ano com a produtora do programa e diz que não pensa em voltar para o campo de batalha.
"Depois da Guerra do Golfo, estive na Somália e na Rússia. Mas acho que está na hora de sossegar um pouco."
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Hockenberry concedeu à Folha , na última quinta, nos estúdios da ABC, em Nova York.

Folha - Como foi o acidente?
John Hockenberry - Eu estava viajando pelos EUA de carona com um colega de faculdade, em fevereiro de 1976. Pegamos uma carona na Pensilvânia com duas garotas da nossa idade. Estávamos todos exaustos e a menina que dirigia dormiu no volante. O carro saiu da pista e caiu numa ribanceira. Desmaiei e quando acordei percebi que não estava sentido minhas pernas. Nunca vou esquecer essa sensação.
Folha - O sr. diz no livro que não imagina sua vida sem a cadeira de rodas. Nunca passou pela sua cabeça que se não tivesse entrado naquele carro sua vida seria outra?
Hockenberry - Fiz essa pergunta há vários anos, mas hoje não perco tempo com isso. Mas estou sendo sincero quando digo que não consigo imaginar como eu seria hoje sem as cadeiras de rodas. É impossível fazer esse raciocínio. Seria o mesmo que especular que rosto eu teria se minha mãe fosse casada com outro homem.
Folha - O sr. disse que só aprendeu a pedir ajuda quando estava no Oriente Médio. Por quê?
Hockenberry - Porque sou americano e aprendi que depender dos outros é uma fraqueza. Aqui, dificilmente as pessoas me oferecem ajuda, porque elas acham que eu me sentiria ofendido com isso. Esse sentimento é muito forte, principalmente entre a classe média branca das grandes cidades, como Nova York.
Folha - Como assim?
Hockenberry - Em 90% das vezes que precisei de auxílio de pessoas na rua, a ajuda foi oferecida por negros. Os brancos de Nova York vêem a independência como uma virtude. Eles não querem que as pessoas perguntem a eles se precisam de ajuda e, por isso, presumem que os outros também preferem se virar sozinhos. Foi essa lógica perversa da sociedade americana que fez com que eu precisasse chegar aos lugares mais difíceis para finalmente me dar o direito de pedir e aceitar ajuda.
Folha - O sr. disse que encontrou ajuda nos lugares mais estranhos...
Hockenberry - Já quebrei o vidro da janela de um táxi e furei os quatro pneus de um outro, aqui em Nova York. Os motoristas se recusaram a me aceitar como passageiro só por causa do trabalho de montar e desmontar a cadeira de rodas e de me ajudar a entrar no carro. Entretanto, quando estava cobrindo o enterro do aiatolá Khomeini, no Irã, fui empurrado durante todo o percurso por um rapaz que havia acabado de conhecer e que gritava "morte aos americanos" na minha cara com a maior naturalidade.
Folha - Como sua família reagiu ao acidente?
Hockenberry - Ter um paraplégico de 19 anos na família não é fácil. Acho que minha mãe foi quem mais sofreu. Em um dos capítulos do livro, eu conto a dificuldade que tive para convencê-la de que precisava vender minha bicicleta, dois anos depois do acidente. Mas acho que hoje ela não sente mais tanta dor.
Já minha sobrinha de 6 anos, que cresceu me vendo na cadeira de rodas, acha que eu sou um herói, o homem mais corajoso do mundo, só porque não sinto nada da cintura para baixo e, consequentemente, não tenho medo de levar picada de abelhas.

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