São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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Delegada do papa nega aliança com islâmicos

JAIME SPITZCOVSKY; SUZANA SINGER
DE PEQUIM

Ela é a estrela maior da Quarta Conferência Mundial da Mulher e já garantiu um lugar na história como a primeira representante do sexo feminino a chefiar uma delegação do Vaticano.
Escolha pessoal do papa João Paulo 2º, a norte-americana Mary Ann Glendon também reluz ao mostrar uma biografia rara em figuras históricas do catolicismo: ela é casada com um judeu.
Glendon, 56, advogada, desembarcou em Pequim no último dia 2 de setembro com a tarefa de defender as teses papais na maior reunião já organizada pela ONU.
A sorridente e delicada professora de direito da Universidade Harvard (EUA) chegava à conferência como um temido inimigo para as feministas militantes, preocupadas com a oposição do Vaticano ao aborto.
Rondava as trincheiras do feminismo o medo de enfrentar uma Santa Aliança entre católicos e muçulmanos, empenhados em apagar do documento final "trechos blasfemos", como a promoção do aborto ou referências a minorias sexuais.
Mas, em sua concorrida entrevista na quarta-feira, que desviou as atenções antes monopolizadas pela primeira-dama dos EUA, Hillary Clinton, Mary Ann Glendon procurou desfazer a imagem de ícone do conservadorismo. "Buscamos uma posição construtiva."
Na quinta-feira, a Folha almoçou com Mary Ann Glendon. Sentaram-se também à mesa o porta-voz do papa João Paulo 2º, o espanhol Joaquín Navarro-Valls, e uma enviada especial do diário "Il Messaggero", de Roma.
Casada há 25 anos com o advogado Edward Lev, Glendon, uma descendente de irlandeses, educou as três filhas segundo os preceitos católicos, trilha escolhida num acordo com o marido.
Mas, em sua casa, também são celebradas as festas judaicas. "E o ano novo se aproxima", lembrou ela numa referência à cerimônia do final deste mês.

Folha - Como o seu marido, que não se converteu ao catolicismo, reagiu quando a sra. foi nomeada chefe da delegação do Vaticano pelo papa João Paulo 2º?
Mary Ann Glendon - Meu marido ama o papa, porque o papa estendeu a mão da amizade ao povo judeu. O papa está quebrando barreiras antigas, derretendo corações. É algo muito bonito.
Folha - Mas o papa João Paulo 2º já fez algum comentário sobre o fato de a sra. ser casada com um judeu?
Glendon - Eu acho que ele nem sabia, ou não estava interessado nisso. Meu marido ia comigo à missa todos os domingos, durante 15 anos, quando nossas filhas eram pequenas.
Costumo dizer ao meu marido que ele é mais católico do que a maioria dos católicos.
Folha - A senhora é apontada como uma pessoa bastante próxima ao papa João Paulo 2º. Como se deu esse encontro?
Glendon - Seria pretensioso da minha parte dizer que conheço o papa pessoalmente como o Joaquín (Navarro-Valls) conhece.
Fui apresentada ao papa em diversas ocasiões e troquei algumas palavras com ele. Sei que ele conhece algo sobre meu trabalho.
Esta é a terceira vez que sou nomeada pelo papa. A primeira foi quando ele criou a nova Academia de Ciências Sociais. A segunda foi para o Comitê de Planejamento de Evento, ligado à chegada do ano 2000.
"Il Messaggero" - Quais são suas impressões sobre a conferência, que começou na última segunda-feira?
Glendon - Bem, vejo a partir de dois prismas. Sou uma advogada, portanto vejo com os olhos de uma advogada e também com a perspectiva dos ensinamentos sociais católicos. Comecemos com a visão da advogada.
Veja o documento em debate, chamado "plataforma de ação". Já vimos antes documentos referentes a direitos humanos: a Constituição norte-americana é bastante curta, a Constituição italiana é bastante curta, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é bastante curta.
E veja este documento: 149 páginas! O documento tem todos os defeitos de algo feito sob a sombra de lobbies, com todos buscando espaço para colocar sua publicidade.
Como interpretar um documento que está em guerra consigo mesmo? É um documento de ação, não fala de novos direitos, nada novo, porque tudo que as mulheres precisam já está na declaração universal dos direitos humanos.
Portanto, dessa vez é para ação, para fazer cumprir o que foi estabelecido em 1948. Ação para desenvolvimento, igualdade e paz, conforme o slogan da reunião.
Olhando como uma advogada para isso, eu digo OK. Olhando como uma católica, eu digo que é maravilhoso, são três objetivos nossos. Mas eu leio o documento, e ele não corresponde às promessas do slogan. Ele é muito estranho.
"Il Messaggero" - Como será o documento ao final da conferência? Que mudanças virão?
Glendon - Espero que, ao final da conferência, haja uma "plataforma de ação" no espírito da tradição dos direitos humanos.
Folha - Mas o Vaticano terá de fazer concessões para que a "plataforma de ação" repita a tradição dos direitos humanos?
Glendon - Aí é que aparece algo estranho. O documento, como está agora, vai contra o espírito da tradição dos direitos humanos.
Primeiro, em todo o momento deste documento, quando maternidade apareceu, a palavra foi colocada entre colchetes, às vezes pela União Européia, às vezes por outros países. Colocam-se entre colchetes as partes do texto sobre as quais não há consenso.
E na declaração dos direitos humanos, afirma-se que maternidade e infância devem receber proteção especial. E está assim não apenas na declaração universal, mas em constituições de vários países.
Segundo exemplo: a declaração universal dos direitos humanos, em seu início, diz que a família é a unidade básica da sociedade.
Quando se diz família, não significa apenas o pai, a mãe e dois filhos. Por que a família é a célula básica da sociedade? Porque a família é onde se cria a geração seguinte, e isso está ligado à especial proteção que se anuncia para maternidade e infância.
No documento de Pequim, a palavra família foi colocada entre colchetes. Por que isso?
Família e maternidade, quando não estão entre colchetes, é porque são apresentados negativamente, como um impedimento para a auto-realização da mulher.
No Vaticano, não somos ingênuos. Sabemos como é difícil para a mulher combinar o trabalho com a vida familiar, especialmente para as mulheres que não são casadas ou que foram abandonadas por seus maridos.
Então, por que esse documento, que supostamente é para as mulheres, não alcança as mães, que são cinco em cada seis mulheres?
Esse é o número para os Estados Unidos, e eu acredito que a proporção pode ser até um pouco maior no Brasil.
"Il Messaggero" - Por que a senhora se opôs tão firmemente à contracepção? A senhora não acha que a autonomia de uma mulher também depende da capacidade de planejar a família?
Glendon - É uma questão bastante natural. Quero ser muito franca com você. Muita gente acha difícil entender os ensinamentos católicos sobre contracepção.
Não ensinamos que é errado planejar sua família, ao contrário, ensinamos que você tem a responsabilidade de planejar sua família.
A parte difícil de nosso ensinamento é que dizemos que você não pode usar métodos artificiais de contracepção.
O fato é que os ensinamentos religiosos nos chamam a um patamar bastante elevado. O ensinamento sobre contracepção vem de nosso ensinamento sobre casamento, que nos leva a uma visão elevada sobre a sexualidade humana.
Quando falo com católicos sobre contracepção, vejo uma ambiguidade: bem, eu acho muito difícil seguir os ensinamentos da igreja, dirá muita gente.
Mas então pergunta-se: como vocês gostariam que a igreja mudasse seu ensinamento?
"Il Messaggero" - Mas por que deve prevalecer, num documento mundial, a posição de uma religião? Não é uma imposição a mulheres de religiões que têm outra visão sobre o problema?
Glendon - A única coisa que pedimos no documento de Pequim é que, quando se faça uma lista das maneiras existentes de planejamento familiar, inclua-se o planejamento familiar natural.
Por que suprimir isso? Não estamos pedindo que outras pessoas sigam os ensinamentos católicos.
Folha - E como enfrentar o problema demográfico e de pobreza em países do Terceiro Mundo sem recorrer aos métodos artificiais de contracepção?
Glendon - Quem está dizendo ao mundo o que fazer nos temas ligados à fertilidade?
Não é a Igreja Católica. Para as mulheres de países pobres, a Igreja Católica é a instituição que está vivendo com elas, sofrendo com elas, acompanhando suas angústias diárias.
Sabemos que o que ajuda essas mulheres a planejar sua família a ter uma família do tamanho que se possa sustentar. São basicamente duas coisas: educação e desenvolvimento econômico. São os melhores contraceptivos.
"Il Messaggero" - Vivi durante um ano na África e vi vários padres e freiras distribuindo métodos artificiais de contracepção.
Glendon - Somos uma grande igreja. Não somos uma organização paramilitar que controla tudo.
A ajuda internacional é que está sendo usada como uma forma de coerção. Países que oferecem ajuda estão distribuindo métodos de contracepção, métodos muito arriscados que usam hormônios. Eles pressionam por esterilização e abortos.
Qual a motivação disso? O bem-estar das mulheres? Ou é porque um terço da população mundial consome 80% dos recursos do mundo? Dois terços da população mundial estão nos países pobres, vivendo com 20% dos recursos.
Por que não cancelar, ou pelo menos reduzir o endividamento dos países pobres, para que eles fiquem auto-suficientes? Você não ouve coisas assim nas conferências como esta, de Pequim.
Folha - Essa proposta de cancelar a dívida é realista ou se trata apenas de retórica?
Glendon - Com certeza, é realista. Nos EUA, há um grande número de credores privados, não o Banco Mundial ou o governo norte-americano, que estão cada vez mais sensíveis em relação a suas responsabilidades morais.
Folha - Como tratar a questão dos abortos inseguros, feitos em condições precárias?
Glendon - Para nós, todo aborto é inseguro. Todo aborto envolve a destruição de uma vida humana. O papa entende as circunstâncias que levam mulheres à situação desesperadora de fazer um aborto em circunstâncias adversas.
Nossos ensinamentos dizem que nós, que estamos ao redor dessas mulheres, temos de fazer da sociedade um lugar onde a mulher nunca sinta que o aborto é a única alternativa que ela tem. Muita gente diz que isso é utópico. Mas as igrejas existem para isso.
"Il Messaggero" -E a questão sexual?
Glendon - No mundo do sexo, diz-se que a religião prega que não se pode desfrutar de sexo. Isso não é verdade. A religião diz que isso é uma das grandes dádivas para os seres humanos.
Folha - Existe a aliança entre o Vaticano e países muçulmanos, para enfrentar, na conferência, as chamadas "forças liberais", que seriam EUA, Canadá e União Européia?
Glendon - Essa aliança simplesmente não existe. Não tivemos nenhum contato direto com os países islâmicos nesta conferência.
Antes da conferência sobre população que ocorreu em 1994 no Cairo (Egito), alguns representantes de países islâmicos estiveram no Vaticano a fim de se encontrar com católicos para debater. Mas agora não houve nada disso e não há nenhuma aliança.
Navarro-Valls - Queria acrescentar algo. Já falei sobre isso em Roma e aqui, em Pequim, muito claramente. As diferenças entre o islamismo e o cristianismo, no que se refere às mulheres, são tão substanciais, que nenhum acordo pode ser alcançado.
O discurso feito na segunda-feira por Benazir Bhutto (primeira-ministra do Paquistão, país islâmico) foi bom. Ela condenou a prática do infanticídio feminino.
"Il Messaggero" - Mas e os pontos em comum entre Vaticano e países islâmicos?
Glendon - Concordamos em alguns pontos, por exemplo, o papel da religião na sociedade.
Acreditamos que o mundo e a vida são marcados pela religião e pela espiritualidade.
Mas, quando você ouve essa história de aliança, percebe que ela é calculada para os ouvidos norte-americanos.
É calculada para despertar e combinar o preconceito que existe contra os árabes, que é muito forte em nosso país, provavelmente porque há poucos árabes nos EUA, e as pessoas não os conhecem de perto.
A história da aliança também vem para despertar o velho preconceito que existe em nosso país contra os católicos.
Folha - A Igreja Católica apresenta correntes que vão desde os fundamentalistas, mais ligados às tradições antigas, até a Teologia da Libertação, que enfatiza a preocupação social. Onde a senhora se posiciona?
Glendon - Estou com o papa.
Folha - Como a "plataforma de ação" deve tratar a questão das homossexuais?
Glendon - Eu acho que tal problema não deve estar na "plataforma de ação".
A conferência de Pequim não é sobre a criação de novos direitos humanos.
É sobre como implementar os direitos que já são reconhecidos. E a sua questão traz um campo em que, mais uma vez, a Igreja Católica é mal compreendida.
Nós acreditamos na declaração universal dos direitos humanos, que diz que todos os seres humanos têm o mesmo valor e dignidade, que precisa ser respeitado.
É no contexto de igualdade, dignidade e respeito mútuo que devemos lidar com a questão.
"Il Messaggero" - Como a senhora avalia o fato de que as mulheres não podem exercer as funções de padre na Igreja Católica?
Glendon - O papa tem estudado esse problema há muito tempo. Quando ouço as pessoas que estão falando sobre a ordenação de mulheres, parece-me que elas fundamentalmente não entendem a natureza da atividade do padre.
É uma vida de auto-sacrifício. As pessoas que defendem a ordenação de mulheres vêem a posição do padre como uma posição de poder. Creio que o papa foi muito sábio ao dizer para esperarmos que as pessoas entendessem exatamente qual é o papel dos padres.
Com o papa João Paulo 2º, o papel da mulher está crescendo muito na Igreja, exercendo funções na missa que eram reservadas a homens vinte anos atrás.
Milhares de hospitais católicos são dirigidos por mulheres. Mais do que grandes empresas e grandes universidades.

Colaborou SUZANA SINGER, enviada especial a Pequim

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