São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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Política da malvadeza

As técnicas de intimidação pessoal de Antônio Carlos Magalhães são conhecidas
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
Hamlet foi condenado por uma única falta. Daí a tragédia. Mas o que havia de podre na Dinamarca não era suficiente para que um senador do reino, nas suas intrigas da corte, apelasse para a chantagem. Se no Brasil há políticos que atingem esse nível de perversão, não é porque chegou o momento da opinião pública rejeitá-los de uma vez e exigir de todos eles novas formas de comportamento?
Mais do que reconhecer as distâncias entre a moral e a política, me parece ainda importante discriminar suas interfaces, os limites que, embora flutuantes, nunca devem ser transpostos. Desde os gregos sabemos que não cabe julgar alguém, na inteireza de seu caráter, por um ato errôneo e condenável: e a moral cristã foi ainda mais radical em condenar todos aqueles que julgam de dedo em riste sem lhes ocorrer que algum dia também eles serão julgados.
Mas existem certas situações em que os tumores precisam ser lancetados, que formas de chantagem precisam ser denunciadas, na medida em que elas configuram práticas políticas de intimidação, de violência coronelista, frutos solidários de uma sociedade de escravos. E está na hora de negar essa forma nefasta e abjeta de servidão, em que um passado podre pode ainda pesar sobre a vida política e a consciência individual.
No final das contas, o que fiz eu para gerar uma reação tão violenta de políticos que se dizem liberais? Dei para o "Jornal do Brasil" uma entrevista publicada em 27/8 em que, em termos duros na verdade, cobrava do PFL maior coerência entre seu discurso liberal e privatista e seu comportamento fisiológico e estatizante.
Seria ingênuo botar todos os membros desse partido no mesmo saco, pois conheço muitos deles e alguns são meus amigos. E a contradição entre o discurso e a prática é uma constante da política brasileira desde os tempos do Império. Que no Brasil o velho está morrendo não vale apenas para o PFL, mas para todos os outros partidos políticos que estão sofrendo enorme processo de renovação, com as exalações putrefatas costumeiras, onde o velho ainda coabita com o novo.
E se assinalei como exemplo a atitude do senador Antônio Carlos Magalhães em relação ao Banco Econômico não é porque fui levado por qualquer preconceito contra o político baiano, mas simplesmente porque ele parecia apresentar o caso mais agudo dessa contradição. Não esperava, porém, que minha análise atingisse o alvo de modo tão contundente, muito menos que a discussão resvalasse para o plano pessoal.
Como era de se prever, o senador ultrapassou qualquer limite de decência. Nem bem publicara a entrevista e recebo dele um fax me desqualificando profissionalmente e pedindo, para o bem do país, que eu não passe a dar conselhos ao presidente da República.
Ora, o presidente, embora sendo meu amigo fraternal, não me pede conselhos e nem eu sou talhado a murmurar nos ouvidos dos príncipes. Ele cumpre hoje em dia seu papel de presidente e eu cumpro o meu de intelectual independente, e, se há rima ou dissonância em nossas conversas, cada um já aprendeu a conviver com as diferenças e até mesmo a prezá-las. Só na cabeça de um velho político decadente, imortalizado em vida no anonimato de um nome de uma rua, pode passar a idéia de que hoje as decisões dependem de conselhos ao pé do ouvido.
Tendo o fax na mão, como em política não me interessam relações pessoais, apressei-me em enviá-lo ao "Jornal do Brasil", a fim de que lhe desse a divulgação devida. Nova surpresa: recebo, precisamente depois de uma viagem a Bahia, um fax do dito senador, que vale a pena -e muita pena- reproduzir:
"Comunico ao ilustre professor que recomendei aos membros da comissão, que representará o Senado na Conferência Mundial Sobre a Mulher, que evite o tema 'Agressão às Mulheres', para que não surjam casos ocorridos no Brasil, particularmente em São Paulo. O senhor não terá nada a me agradecer com a providência adotada, pois visa também poupar pessoas amigas de ouvirem fatos que não merecem ser relembrados. Conte sempre com minha benevolência. Atenciosamente, Antônio Carlos Magalhães."
Nunca imaginei que possuiria um documento tão ilustrativo daquela violência política brasileira que já foi descrita na biografia de Assis Chateaubriand. O senador imagina que pode me dar um tiro no períneo porque lhe venho cobrar uma duplicata, agora não em termos monetários, mas simplesmente em termos ideológicos. Ora, não há como ceder a uma chantagem dessa espécie.
Houve sim, há 15 anos atrás, um deplorável ato de agressão contra aquela que naqueles anos tinha sido minha mulher. O fato foi amplamente noticiado pela imprensa e sempre me recusei a entrar nos pormenores da violência para não expor minha intimidade ao público e comentar fatos que envolviam toda uma família, mas não posso admitir que meu erro, seja qual for sua abrangência e sejam quais forem as circunstâncias atenuantes, possa servir como único critério para julgar meu caráter, e muito menos de meio de chantagem da parte de um político desqualificado.
Esse não é instrumento adequado para me forçar ao silêncio, quando estou no exercício de minha profissão e cumprindo meu papel de intelectual com obrigações na vida pública. As técnicas de intimidação pessoal do senador são sobejamente conhecidas e revelam o tipo de política perversa praticada por ele. Prefiro me expor a um julgamento público do que me calar diante de uma chantagem desse teor. Esse asqueroso episódio revela até que ponto é possível se degradar na atual política brasileira.
Espero que sejamos capazes de renunciar a esse passado de violência hedionda. De um lado, no nível pessoal, para que os relacionamentos se teçam na base de respeito mútuo, para que as companheiras não sejam agredidas e os companheiros não sejam linchados pela opinião pública, sem que as circunstâncias de um desatino sejam conhecidas.
De outro lado, é preciso cuidar para que a política, na sua eterna discriminação de amigos e inimigos, não perca de vista que nada vale a pena a ser projetado, se a sociedade que disso resultar venha a ser uma associação de celerados.

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, 65, filósofo, é professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo) e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

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