São Paulo, sábado, 16 de setembro de 1995
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O pecado dos ovos

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Ao contrário dos armazéns e açougues, as quitandas de antigamente não tinham nome. Lá no Lins e Vasconcelos de minha infância havia o "Armazém Dois Mundos Irmãos" -que nos mandava pelo Natal uma belíssima folhinha com um cair de tarde sobre a foz do Tejo. Duas portas depois, havia o "Talho Máximas Potências" -o açougue onde eu vendia jornais velhos para comprar balas. Na parede ladrilhada, lá em cima, brilhavam os dois escudos que eu detestava: Vasco e Flamengo.
Quitanda não tinha nome. Na melhor das hipóteses, era conhecida pelo nome do dono -ou da dona, como o caso da Quitanda da Barbuda. Barbuda era uma galega magra, de olhos fundos e escuros, estava sempre vestida de preto como as mulheres da praia de Nazaré.
Não era barbuda, como uma mulher de circo. Mas tinha um enorme buço que era quase um bigode. Certa manhã, mandaram-me comprar uma dúzia de ovos na Barbuda. Não sei o que me deu, o fato é que esqueci. Na hora do almoço, meu pai perguntou pelos ovos, garanti que não havia ovos na Barbuda. Tudo bem.
Acontece que logo depois o pai passou pela porta da quitanda e viu imensa cesta cheia de ovos. Criou um caso. Barbuda chorava, jurando que eu não tinha ido lá, o pai mandou me chamar e invocou meu testemunho. Menti sordidamente -e foi aí que a Barbuda caiu num pranto histérico, de doer o coração. Em sinal de desespero, varejou a cesta de ovos na rua, um carro fez sem saber o maior omelete do mundo.
Na minha confissão semanal, o padre era um italiano que ainda não compreendia bem o português. Além do mais, contei o incidente com muitos atalhos e atavios, acho que ele entendeu que eu fora seduzido por uma portuguesa que tinha um bigode na cara e que me oferecia ovos para topar a sedução, que eu resistira dentro de minhas possibilidades, só não chegáramos aos finalmentes por causa do pai que aparecera na hora -enfim, a história foi complicada, metade porque o padre não entendia, metade porque eu não fazia muito esforço para que ele entendesse.
De qualquer forma, em nome de Deus e do próprio, ele me absolveu. O diabo é que hoje, tantos anos passados, ainda não me absolvi.

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