São Paulo, terça-feira, 19 de setembro de 1995
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As incorporações e o resíduo da inflação

ODYR PORTO

Recente prescrição contida na medida provisória nº 1.053, de 30/6/95 (art. 2º e parágrafos), reeditada, sem interesse relativamente ao tema considerado, pela medida provisória nº 1.079 (28/7), vem preocupando o mercado imobiliário de incorporações face à perplexidade em que se encontram não apenas os empresários desse setor, mas, sobretudo, os candidatos à aquisição dessas unidades no geral residenciais, com agravamento da nossa já séria crise habitacional.
Sustenta-se, com tal fundamento legal: a) que os reajustes ou correções nominais do preço convencionado em promessas de compra desses imóveis (correção monetária restrita à inflação), tendentes, na verdade, apenas a manter o valor inicial do negócio sem gerar acréscimo real algum, são vedados e reputam-se nulos quando estipulados para ter eficácia antes de um ano; b) que esses reajustes ou correções anuais não podem cobrir o resíduo inflacionário desse período anterior de 12 meses; c) que, além disso, mesmo face a eventuais acontecimentos supervenientes, ainda que extraordinários e imprevisíveis, como, por exemplo, as alterações econômicas decorrentes de inesperadas medidas governamentais, capazes de desequilibrar a equação econômico-financeira vigente ao tempo da celebração do contrato, a recomposição do preço original é proibida.
Em todas essas hipóteses o prejuízo haveria de ser suportado pela incorporadora/construtora, ou seja, pela vendedora, ensejando autêntico "locupletamento injusto" do outro contratante.
Para obviar essa onerosidade excessiva, a solução lógica seria embutir no preço inicial do contrato a previsão do quase imprevisível, a inflação estimada desse período e também os reflexos econômicos das sempre possíveis interferências governamentais futuras.
Isso encareceria o mercado imobiliário e constituiria indesejável fator de estímulo inflacionário, inclusive porque, temendo errar na antecipação desse valor, essa avaliação tenderia a exagerar. Em suma: uma MP editada para combater a inflação estaria inflacionando.
Juridicamente, esses efeitos perversos podem ser evitados ou amenizados?
É exato que o parágrafo 1º do art. 2º da questionada medida provisória declara nula de pleno direito "qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano". E que o parágrafo 3º desse mesmo artigo nulifica "quaisquer expedientes que, na apuração do índice de reajuste (anual, acrescentamos), produzam efeitos financeiros equivalentes aos de reajuste de periodicidade inferior à anual".
Afigura-se prudente, contudo, na interpretação dessas inibições legais, desde logo se ressaltar dirigirem-se elas aos reajustes, que, no entender da melhor doutrina, são os acertos convencionais visando refazer nominalmente o preço desajustado pela inflação, equivalendo à incidência da correção monetária.
Não se aplicam tais limitações à dita recomposição de preços, que, consoante parecer do advogado Pedro Paulo de Rezende Porto, citando, entre outros, Hely Lopes Meirelles e Arnold Wald, tem feição diversa, encontra fundamento na teoria da imprevisão ou na cláusula "rebus sic stantibus", ínsita nos contratos comutativos como o focalizado.
Essa recomposição se justifica para restaurar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, sempre que acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, como, por exemplo, os inesperados "pacotes" oficiais, pelas suas repercussões tornarem as obrigações atribuídas a um dos protagonistas do negócio insuportavelmente onerosas. Diante dessa sua peculiar conotação, as recomposições, à evidência, sempre serão admissíveis, a qualquer tempo, como vem decidindo o Poder Judiciário.
Voltando, porém, ao reajuste (correção monetária contratual), obstaculizado pela medida provisória, algumas considerações preliminares se impõem.
A primeira, de que a intervenção estatal no setor privado não tem, em todas as ocasiões, sentido impositivo, como ocorre em relação ao setor público. Essa diferença está nítida no art. 174 da Constituição. Há, na área privada, uma reserva imune a essas injunções, de livre pactuação, caracterizando a liberdade de contratar, corolário do princípio constitucional da livre iniciativa.
Noticia a imprensa que o professor Miguel Reale já emitiu parecer enfatizando essa particularidade. E quem integra o mundo jurídico sabe do peso desse maior jurista brasileiro contemporâneo. Qualquer invasão da economia privada excedente dessas divisas, fundamentais em nosso Estado democrático de Direito, poderá ser inquinada de inconstitucional.
Outrossim, não se deve aceitar uma interpretação de lei que consagre conclusão iníqua, como seria o enriquecimento injusto de um dos contratantes, imposto à revelia dos integrantes do contrato, com o empobrecimento, até insuportável, do outro personagem da relação negocial.
Assentes tais premissas, pode-se inferir que a MP 1.053 jamais pretendeu afrontar a Carta maior ou ignorar a inflação anual nos contratos comutativos da natureza ou transferi-la a um só dos contratantes. A lei não é o texto mas o contexto. O que se deve buscar é o sentido do direito legislado, a "ratio juris" dos dispositivos considerados.
A intenção da lei, no caso, indubitavelmente é de condenar sucessivas correções de preço, com reflexo inflacionário. Não terá sido de ignorar, afrontando a realidade, uma inflação que certamente vai existir, chancelando a inverdade. E admitindo, como é curial, que a inflação não foi ignorada, nem seria concebível a lei dizer, violentando a Constituição porque à revelia dos signatários do contrato, que apenas um dos contratantes a suportaria, somente ele empobreceria, enriquecendo o outro.
Assim o enunciado da alínea "a" (proibição de se reajustar o preço antes do decurso de um ano) é legítimo. Contudo, o enunciado da alínea "c" (vedação das recomposições de preços) é inaceitável. E o da alínea "b" (impossibilidade de ser cobrado o chamado "resíduo" anual) há de ser interpretado com extrema cautela.
Sendo intolerável a conclusão que favorece o enriquecimento injusto de um dos contratantes e bastante discutível que o Estado possa interferir a esse extremo na economia privada, é necessário encontrar regra exegética equitativa na atribuição desse ônus da inflação, como a sua partilha entre os interessados no negócio.

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