São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 1995
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Absalão! Absalão!

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO -Nada a ver com o romance homônimo de Faulkner. Deu-se que recebi notícias de um outro Absalão que sempre julgara inexistente, que frequentou o meu imaginário através das histórias -essas sim, irreais, inventadas por meu pai.
Foi o filho do Absalão que me procurou. Ao telefone, apresentou-se como tal: filho do Absalão. E esperou que eu o reconhecesse. O que não foi difícil. Devem existir alguns Absalões pelo mundo mas, no que me toca e concerne, há somente um e bastante.
Geralmente, era ao final dos domingos. O pai aproveitava a família reunida e começava a contar suas façanhas de menino de São Cristóvão, apanhador de balões e profanador do cemitério anexo, que fica no Caju. Tinha um sócio nessas aventuras, justo esse Absalão cujo filho estava ao telefone.
Eu nunca acreditei nessas aventuras, muito menos nesse Absalão. Os dois -segundo o pai- formavam uma dupla que provavelmente ele chupou de Mark Twain. Foi fácil descobrir que ele se julgava um Tom Sawyer e que precisava de um Huckleberry Finn para servir de escada. Esse Huck era o Absalão.
O seu rio Mississippi era o próprio cemitério onde tudo de fantástico acontecia. Ao lado, ficava a praia do Caju, onde os dois iam morrendo afogados num dia de procela braba, haviam roubado mangas durante o enterro de um deputado, fugiram para o mar, tomaram uma canoa que estava dando sopa, caiu o temporal, foram parar no Leblon -essa aventura equivaleria, no universo de Mark Twain, a fazer a sua dupla de heróis tomar um barco no Mississippi e ir parar no Tietê. Evidente que ele não seria tão alucinado. Mas o pai era.
Por essas e outras, já que eu não podia duvidar da existência do pai, achava que esse Absalão não podia existir. Mas o filho dele estava ao telefone, igualmente incrédulo, não acreditando que o pai tivesse existido, donde: que eu também não existisse.
Desconcertados, trocamos banalidades, ficamos de nos encontrar um dia desses. Mas ao desligar o telefone, caí em depressão. Se as histórias do pai começam a se confirmar, quem vai perder irreparavelmente o pé no mundo e a confiança na vida sou eu mesmo.

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