São Paulo, sexta-feira, 29 de setembro de 1995
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Os nefelibatas, os filósofos e a Justiça Militar

GETÚLIO CORRÊA

Voltaire manifestou que preconceito é uma opinião sem julgamento (in Dicionário Filosófico. Rio: Tecnoprint, s/d, p. 186), idéia em que se inserem alguns articulistas, juristas ou filósofos, quando o tema é Justiça Militar.
Permito-me responder a essas manifestações, ainda que em razão disso possa ser criticado pelo filósofo Roberto Romano ao recriminar os juízes que "frequentam a mídia" (Folha, 18/5, pág. 1-3), olvidando que a função do magistrado implica não só tornar sua atividade transparente, mas ocupar o espaço, felizmente democrático, da Folha para estabelecer uma dialética necessária aos leitores, pois essa omissão seria ato imperdoável à busca da verdade.
O deputado federal Hélio Bicudo mais uma vez escreve neste jornal (6/9, pág. 1-3) contra a Justiça Militar, citando "episódios marcantes" de violência policial causados, na sua ótica, pela impunidade da Justiça que os julga.
Ora, se a premissa for verdadeira, convém lembrar que o caso de Acari e as chacinas de Vigário Geral, assim como a da Candelária, embora praticadas por policiais militares, não são crimes militares e seus autores estão (ou serão) processados pela Justiça comum. Já se disse, com muita propriedade, que criminoso não está preocupado com o foro que o julga. Se o raciocínio tivesse validade, não existiria o crime organizado de tráfico de drogas, de sequestros, de assaltos a bancos, dos anões do Congresso, da Previdência etc. nem teriam ocorrido as 33 chacinas em São Paulo, todos, reitere-se, crimes comuns.
Curiosamente, tanto o ilustre deputado quanto o filósofo repetem o velho e surrado mote do "corporativismo gravíssimo", mas aceitam a existência da Justiça Militar federal como se os princípios que a regem fossem diferentes.
Ambos reconhecem a legitimidade da Justiça Militar federal, mas esquecem (ou não sabem) ser essa a Justiça que processa não só militares das Forças Armadas que cometam crimes contra civis, como os ocorridos na Operação Rio contra o crime organizado, mas julga civis que cometam crimes militares.
Censurar uma Justiça Militar e justificar a outra é, no mínimo, hipocrisia -se conhecem as leis que as regem- ou ignorância -se as entendem de forma distinta.
Estranha-se que o deputado critique a Comissão de Justiça do Senado ao rejeitar o substitutivo apresentado pelo senador Roberto Freire, mantendo o projeto nº 102/93 nos termos em que recebeu aprovação na Câmara, afirmando que a decisão "choveu no molhado" sob a alegação de que o julgamento pelo júri dos crimes dolosos contra a vida já está previsto na Constituição federal.
O parlamentar sabe, mas omite, que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, em diversos casos, que o julgamento pela Justiça Militar dos crimes militares constitui-se uma exceção à regra da competência do Tribunal do Júri, inscrita no art. 5º, inciso 38, alínea "d" da atual Constituição. Em consequência, a decisão dos ilustres senadores que compõem a referida comissão, por 14 votos a 3, além de não deixar dúvidas acerca de sua legitimidade, corrige distorção reconhecida por todos os magistrados que atuam na Justiça Militar, remetendo os processos de homicídios consumados e tentados para a manifestação soberana do democrático Tribunal do Júri.
Ora, o Congresso não é composto de alienígenas. São todos representantes do povo e dos Estados. Suas decisões devem ser acolhidas como representativas do pensamento da sociedade.
Pretender, como quer o deputado federal Hélio Bicudo, que a maioria da Câmara e os senadores que compõem aquela comissão, por aprovarem o projeto originário da Câmara, sejam nefelibatas é inverter o sentido do termo.
Nefelibata é o que teima em recusar a manifestação da esmagadora maioria; é o que insiste em ver na Justiça Militar um órgão de proteção, como se todos os seus integrantes fossem uma quadrilha, esquecendo-se que ela é integrada por juízes togados (concursados) e juízes militares que têm honra e dignidade e que exigem, mais que tudo, o respeito às funções que exercem.
Nefelibata é o antidemocrata que não aceita o resultado que lhe é adverso, culpando, num discurso de palanque, a Justiça Militar pela prática de crimes por policiais militares, como se a existência da Justiça comum pudesse impedir a violência que grassa no país.
Teimar em apontar o dedo para a Justiça Militar dos Estados, vendo nela "anomalias", e esquecer que os princípios que a regulam são os mesmos da sua congênere federal é querer tapar o sol com a peneira, demonstrando receio de discutir a essência do problema, pois sabem, os que assim procedem, que não convém, estrategicamente, atacar as duas Justiças Militares.
Felizmente o deputado não comete a infantilidade de Roberto Romano, que pretende reconhecer a "eficácia e tradição" da Justiça Militar federal ao mesmo tempo em que critica a Justiça Militar estadual, pois no "juízo militar não decidem os iguais, mas os superiores", Justiça, segundo ele, composta de "juízes temporários" sem o "saber indispensável para a aplicação das leis".
Será que o filósofo imagina que os juízes da Justiça Militar federal são todos togados, permanentes, e que lá o soldado é julgado por soldado?
É preciso que todos discutam a questão sem pruridos ideológicos e na amplitude necessária, sem receio de ferir suscetibilidades das Forças Armadas.
Recomendável ao filósofo Roberto Romano que estude, ainda que superficialmente, o sistema jurídico vigente, evitando afirmações pueris até mesmo para acadêmicos de direito; sugiro ao deputado federal Hélio Bicudo, de quem se deve reconhecer um passado de lutas, que atualize seu dicionário, pois não são os outros os nefelibatas; aos dois é necessário que evitem a difusão de rancorosos preconceitos, ofensivos à honra dos magistrados, e tentem fazer ciência política ou jurídica, não pregação ideológica.

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