São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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Nada há de errado no filme de Angra

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Primeiro, foi aquele cara chutando a santa. As imagens gravadas, editadas e dropadas se repetiram incessantemente. Tanto que o cara começou se chamando Von Helder e terminou perdendo o "r" final de seu nome, como um jogador que perde uma trava da chuteira nas depressões da linha de córner.
Depois vieram os filmetes sobre a intimidade da Igreja Universal. Ou dá ou desce, verão em Angra, noites de Jerusalém. Dizem que há toda uma série nos esperando em 96, e, se dependesse de mim, gostaria de escândalos mais bem enquadrados, num foco rigoroso e, de preferência, filmados em 16 milímetros para garantir um mínimo de sutileza nas cores.
No fundo, tudo isso é intimidade de gente que toma cerveja em lata e come batata frita, mostrada para milhões de pessoas que tomam cerveja em lata e comem batata frita. As imagens nos falam desse mundo maravilhoso onde todos terão sua cerveja em lata e sua batata frita e também algumas liquidações para se arranharem e se acotovelarem; ninguém é de ferro, irmão.
O que há de errado no filme de Angra? Talvez as barrigas dobradas, molengas, meio macilentas. Nada que não se possa corrigir em alguns dias de purgatório, com 150 abdominais diários.
Pode se acusar a Igreja Universal de farofeira, porque seus pastores se enrolam na areia das praias? Mas vamos voltar à cerveja em lata e às batatas fritas. O pastor Macedo estava apenas passeando em Angra. Roberto Marinho tem jornal, Macedo também tem. Marinho tem uma TV, Macedo também tem. Marinho tem muitas rádios, Macedo também tem. Por que diabos Macedo deixaria de sonhar com o litoral de Angra dos Reis, onde Marinho tem um iate e uma linda casa?
Não se fazem mais Antonios Conselheiros como antigamente. Os pastores querem um "resort", os fiéis querem uma casinha, os sonhos encurtaram, estreitaram. O rebanho é tangido para o shopping center, nosso horizonte é pobre como as sequências do cinegrafista amador.
O pecado de Macedo e seu episcopado é o de abandonar a imagem de Deus e perseguir a de Roberto Marinho. Ora, se Deus morreu mesmo, pra que trocar de canal? Melhor será ouvir a bíblia na voz do Cid Moreira, deixar que Paulo Francis dê a sentença do juízo final e sair atrás das estrelas para achar o filho da Xuxa num monte de feno.
Quanto às cenas sensuais de Jerusalém, francamente. Nos 3.000 anos de vida, a cidade nunca viu nada tão desestimulante. Claro, o filho do deputado abraçou o pastor Honorilton (temos de achar um nome artístico para ele, não?) pelas costas. Mas o pastor sente o hálito quente, o sopro na nuca e se desvencilha rápido. O que disse o filho do deputado naquele preciso momento? Coragem, irmão, o reino de Deus está próximo.
Mas pastor não se engana: ele sabe, desde menino, que o diabo funga no cangote e todo homem ao sentir o vento infernal na altura da nuca tem duas alternativas: salta e mostra a cruz, ou fica e corre o risco de subir no fio e passar a fazer milagre, como aquela mulher de filme de Pasolini.
Honorilton saltou imaculado, como a mais pura das farinhas de trigo. Mesmo sua ameaça de tirar a roupa foi rápida, furtiva. Supor que os pastores e aquelas matronas fossem fazer algo mais do que jogar biriba com batata frita é atribuir a Jerusalém um poder milagroso, superior ao que ela tem.
Aliás, de todos os diálogos, restou mesmo só a frase "ou dá, ou desce", do bispo Macedo. Ela não foi dita com o cansaço de um caminhoneiro que tenta expulsar o carona, derrotado pela incapacidade de seduzir e, simultaneamente, observar as regras do trânsito, os buracos da estrada. Ela foi dita com a agressividade de um estuprador e arruinou por muitos anos todas as fantasias sobre o reino dos céus.
Imagine, chegar lá em cima encontrar o bispo Macedo de camiseta, com a mão na cintura berrando para os mortos do dia que se concentram na porta do paraíso: "Ou dá ou desce". Vamos todos descer, rapidamente, com a esperança de ainda ver os gols do Fantástico.

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