São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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Algumas pimentas são mais ardidas

MARTA SUPLICY; LUCY CHOINACK

A trabalhadora do campo já se vê como tal. Entretanto, sua situação continua desfavorável
MARTA SUPLICY e LUCY CHOINACK

"Supõe-se que Deus escreve direito por linhas tortas, mas não os homens, que quando o fazem é porque têm torcidas também as intenções."
Yadira Calvo, in "Las Líneas torcidas del Derecho"

Ser trabalhadora já é difícil: possibilidades reduzidas de registro em carteira, salário mais baixo do que o do homem, falta de infra-estrutura para atender às crianças, falta de divisão de trabalho doméstico... Ser trabalhadora do campo é multiplicar por muito todas essas dificuldades. E agora o governo quer colocar mais uma no momento em que propõe a retirada do princípio da idade de aposentadoria e tempo de serviço diferenciados na Constituição. Retirando-se o princípio da Constituição, retira-se o direito.
O governo deseja que as regras de aposentadoria para homens e mulheres assalariados, urbanos e rurais, sejam as mesmas. Todos terão de ter contribuído por 40 anos com a Previdência e ter, no mínimo, 60 anos de idade. Em relação às mulheres do campo, pequenas proprietárias, ele não só retira do texto constitucional o direito de aposentadoria aos 55 anos como aumenta para 57 anos através de disposição transitória (a ser discutida na lei complementar assim como as aposentadorias por tempo de serviço).
As mulheres, e muito particularmente as mulheres do campo, têm se movimentado para não perder o direito à aposentadoria diferenciada.
Conseguiram o aval do relator, deputado Euler Ribeiro, sobre a garantia dessa diferença. Entretanto, o relator não manteve a forma de contribuição rural à Previdência Social que é o pagamento sobre a produção comercializada. Essa é a garantia para o trabalhador rural de sua equiparação com o recebimento do benefício igual ao urbano. Muitas vezes o trabalhador, homem e mulher, não tem o dinheiro vivo para pagar a contribuição previdenciária, mas sendo o pagamento uma alíquota sobre a produção, ele sempre consegue.
O governo parece partir do princípio que os rurais não contribuem e estar pensando em jogar os trabalhadores rurais na área da assistência social, onde somente os carentes seriam os contemplados.
Historicamente as mulheres sempre estiveram presentes no trabalho do campo, aparecendo nos censos demográficos desde 1940, mesmo que, em virtude dos regimes de economia familiar, sua presença era invisível como trabalhadora. Seu papel era o de "mulher do produtor ou mulher do lavrador". A mulher já não aceita essa visão de si mesma. Hoje a trabalhadora do campo já se vê como tal. Entretanto, sua situação continua muito desfavorável.
Dados recentes de pesquisa realizada pela Contag para identificar o perfil de saúde das trabalhadoras rurais, realizada em 19 Estados brasileiros com 928 mulheres, revelam dados estarrecedores: 53% delas tiveram um filho natimorto e 10% tiveram mais de quatro. Esses índices estão diretamente associados à ausência de pré-natal, de condições básicas de saúde, permanente contato das trabalhadoras rurais com os agrotóxicos usados nas lavouras. Mais de 67% das trabalhadoras rurais jamais receberam informações sobre os riscos que corriam e, por isso, 62% delas usam embalagens dos produtos químicos para guardar água, mantimentos ou cereais.
Esse alto grau de desconhecimento dos efeitos dos agrotóxicos sobre a saúde faz com que 81% das mulheres não façam qualquer relação entre o manuseio dos insumos químicos com seu estado de saúde. Ao mesmo tempo, 54% das mulheres se queixam de problemas crônicos de saúde. Pode-se notar o mesmo na região de Franca com as mulheres e crianças que trabalham no mercado informal, nas "bancas", que confeccionam sapatos para a indústria local: dói a cabeça, têm dificuldades respiratórias, dores no corpo, sensação de fraqueza e problemas neurológicos. As crianças (!) têm um alto índice de reprovação escolar, e a família não faz a relação de causa e efeito.
É também bastante alto o número de casos de aborto não-induzido: 42% já tiveram perda fetal espontânea. No meio urbano, a estimativa média de aborto espontâneo não ultrapassa 10%. Para as especialistas esse alto índice registrado na zona rural tem relação não só com o indiscriminado uso de agrotóxicos, mas, também, com a sobrecarga física a que as mulheres do campo são submetidas ao longo da vida, não sendo poupadas nem mesmo quando estão grávidas. Essas mulheres engravidam muito jovens e têm taxa de fecundidade elevada. A taxa de natalidade também é alta. Das 41% que têm nove filhos, somente três sobrevivem.
As causas da mortalidade infantil estão vinculadas à precariedade de saneamento básico, baixo nível nutricional, falta de acesso aos serviços de saúde e alta incidência de doenças infecto-contagiosas.
Governo e deputados não podem desconsiderar a realidade de que mais de 50% das mulheres do campo começam a trabalhar antes dos 10 anos de idade. Antes dos 15 anos, 90% já estão nas atividades do campo. Muitas delas não terão nem sequer um dia de repouso semanal nas suas vidas.
Caros colegas, pimenta nos olhos dos outros realmente não arde. Mas essa, a longo prazo, vai doer nos olhos de todos.

MARTA SUPLICY, psicanalista, é deputada federal pelo PT de São Paulo e membro da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

LUCY CHOINACK, é presidente do PT de Santa Catarina. Foi deputada federal pelo PT de Santa Catarina.

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