São Paulo, sexta-feira, 5 de janeiro de 1996
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Obra de Leonilson busca comunicação ideal

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Hesitei bastante antes de comentar a exposição de Leonilson (1957-1995), na galeria do Sesi, até 28 de janeiro. Há algo de forte, de pungente nos desenhos e bordados desse artista. Mas o que significam? Sobre quatro retângulos de feltro verde, encontramos três palavras: "abismo", "pérolas", "o templo", bordadas em linha preta. A figura esquemática de um homem nu está no retângulo superior direito.
É bem difícil entender. Mas às vezes não é tão difícil assim. Há, por exemplo, um travesseiro branco, onde foi bordada, perto da ponta esquerda, uma palavra: "Ninguém". Certamente não é preciso ser crítico de arte para perceber o que isso significa. Solidão, ausência da pessoa amada, um travesseiro vazio, a paciência do bordado da espera: Leonilson criou um objeto poético, sem recorrer ao artifício da incompreensibilidade. Soube ser original e simples, coisa que poucos conseguem.
Outra coisa que ele conseguiu foi chamar a atenção dos críticos e diletantes para algo que anda fora de moda hoje em dia: o significado. Em geral considera-se mais importante numa obra de arte a forma, a organização visual, o jogo das linhas e bem menos importante o que ela significa, ou quais as intenções do autor. Surge assim uma espécie de crítica de arte pautada pelo "desentendimento".
Caricaturando, a coisa funciona mais ou menos assim. Um artista qualquer faz uma instalação com bananas e massa de nhoque. As bananas apodrecem, o público pisa na massa de nhoque. Intervém então o discurso do crítico de artes plásticas. "Fulano faz uma pesquisa do material. Questiona o espaço de uma galeria de arte, provando o efêmero de sua própria obra."
Aliás, esta palavrinha -"próprio", "própria"- é a marca registrada da crítica de artes plásticas. Suprima-se este "o próprio", e metade dos textos cai por terra. Em geral, usa-se "o próprio" acompanhado de um verbo no infinitivo: "o próprio fazer do artista", "o próprio questionar", "o próprio ser da obra". O próprio cair por terra é emblemático de uma pesquisa do tectônico, do essencial, na obra de X..., que radicaliza o olhar. Mais detalhes em Umberto Eco, "Segundo Diário Mínimo", que parodia o estilo dos catálogos de exposição.
O problema é que Leonilson parece exigir uma compreensão -ou pelo menos uma busca- do significado. Não dá para delirar muito em torno do "fazer", do "bordar", da "organização do material", do "pictórico" nessas obras que procuram, desesperadamente, comunicar-se com o espectador.
Cada palavra -"abismo", "pérolas", "ninguém"- é quase que uma senha, um grito, um enigma inscrito dolorosamente na superfície da obra. Ou você entende ou não entende. Não digo que entendo. Mas tento partir do mais óbvio, aquele travesseiro onde está escrito "ninguém".
Há outros símbolos, na exposição de Leonilson, dessa experiência da solidão amorosa. "O Matemático e o Andarilho", por exemplo, é um desenho que mostra dois corpos unidos por um sistema de polias, de cabos de transmissão, como que num ideal explícito de comunicação apaixonada. Outro caso é o de "Jogos Perigosos", onde duas figuras de perfil se ligam através de tiras brancas, fazendo uma ponte sobre o que aparenta ser uma estrada.
Mais bonito, e mais direto, é o desenho intitulado "Longo Caminho de um Rapaz Apaixonado", que mostra dois corpos iguais, ligados pela mesma polia, enquanto à esquerda lemos "SP" e à direita lemos "Rio".
O tom confessional, autobiográfico, é evidente. Leonilson estava tendo um caso com um rapaz morando no Rio: a distância entre os dois -a comunicação entre os dois- é transmitida de forma quase ingênua, como que num jogo de mímica.
Sobre a ingenuidade falarei depois. Interessa ver agora como nas obras mais enigmáticas de Leonilson está presente esse ideal da comunicação amorosa. Corro o risco de estar entendendo demais o que ele fez.
Mas é comum, em Leonilson, que ele pinte o corpo humano, ou em especial o coração do homem, como se fosse uma espécie de mapa; "cartografia do corpo", diz com acerto Lisette Lagnado no catálogo da exposição. As veias e artérias que saem do coração são desenhadas como se fossem rodovias; cada pedaço do corpo é um país. Pontes feitas e desfeitas rasgam o papel e o pano. Todo amor é uma espécie de diplomacia entre países sem intérprete.
Ferido, infeliz, doente coração, o de Leonilson, que está sempre a desenhar caminhos toscos entre ele mesmo e o objeto amado. Sua obra parece ser um grito sufocado entre ele e a pessoa amada.
Imagino entender com isso um de seus quadros, chamado "O Pescador de Palavras" -é o desenho de um vulto branco, à beira de um rio, com uma vara de pescar, pegando algumas palavras em alemão -"Bruecke", ponte, por exemplo). Quem é "o pescador de palavras"?
Tenho certeza de que quem "pesca palavras", se não for gramático ou copidesque, é sempre a pessoa apaixonada. Aquela que espera, do ser amado, uma migalha que confirme a afeição. Todo apaixonado é um decifrador dos signos esparsos que a pessoa amada emite. Um "bom-dia", um "oi" valem qualquer pintado, qualquer garoupa na brasa.
Só que, para Leonilson, essas palavras pescadas, na insegurança que há na condição de se apaixonar, no acaso, no mistério que há em toda escuta, transferem-se ou traduzem-se para a própria obra. (Lá vou eu usando o termo "própria"!).
Explico. Leonilson deixa soltas palavras -abismo, pérolas- para nós, espectadores, assim como algumas palavras foram deixadas -oi, bom-dia- para ele, num virtual aceno de amor. Ele é enigmático como é enigmática, e cheia de significado, a pessoa amada.
Mas como ser enigmático, hoje em dia, numa obra de arte? A resposta de Leonilson é relativamente compreensível e simples. Ele finge ser primitivo: na caligrafia, no desenho, no bordado. Aí está o seu romantismo mais profundo: achar que, na letra de crianças, no rudimentar dos desenhos, no feminino do bordado, haja algo de verdadeiro e frágil a ser entendido.
Sua incompreensibilidade é então compreensível: o que houver de tosco significa a pureza do sentimento, o que houver de malfeito significa a espontaneidade do coração. Coração que ele desenha mal, numa anatomia de gravura de cordel. Artista sofisticado, ele se torna difícil de propósito. Pois assim retrata melhor sua solidão. Dispersa palavras vagas no ar, remenda seus panos, grava suas figurinhas, borda números e frases no pano, no desespero de quem tem algo a dizer, e sabe que, quanto a nós, espectadores e críticos, só muito pouco podemos ouvir.

Exposição: São Tantas as Verdades
Artista: Leonilson
Onde: Galeria de Arte do Sesi (av. Paulista, 1313, tel. (o11)253-5877)
Quando: até dia 28; ter/sex, 8h30/20h30, sáb e dom, 14h30/20h30

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