São Paulo, sexta-feira, 5 de janeiro de 1996 |
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Obrigada, panela e tampa, por mais um ano
NINA HORTA
Havia sido convidada para assistir a uma demonstração do mestre Yukio Kawai, chef japonês que veio morar no Brasil e que tem como objetivo misturar suas técnicas com as nossas, seus ingredientes com os nossos. O que poderia ele nos ensinar, tirar de seu grande bolso oriental? Muita coisa. E quem são esses deuses da cozinha? Nada mais são do que o óbvio, o que tem que ser. São o deus da água e do fogo, administrados pelo deus da culinária. E os fiéis somos nós, aqueles que passam a vida a se preocupar com comida, os profissionais da comida. No fim do ano, como é natural, acontecem as cerimônias religiosas para agradecer, para expiar as culpas pela matança dos seres vivos, para oferecer sacrifícios aos deuses, para prometer frugalidade de ingredientes, tudo minuciosamente detalhado e prenhe de significado. E nessa hora, nesse fim de ano, é que temos de lembrar o respeito que devemos ao frango, à rã, aos peixes de ouro e prata, ao porco gordo, à frágil codorna, ao arroz abundante, às verdes ervilhas. Todos seres vivos que existem para serem usados por nós, mas que exigem carinho e respeito. E não só deles devemos nos lembrar, mas de nossos instrumentos de trabalho, as facas que nos obedecem o ano inteiro, as panelas cheias de mansuetude, grossas, condutoras de calor, as peneiras finíssimas, as conchas de sopa, o martelo, o "stemer" de bambu. E porque não deixá-los descansar por um dia, por umas horas, numa metáfora de boa vontade e agradecimento? Sobrou a cozinha, a nossa oficina, o lugar de trabalho, que deve ser prática, limpa, lugar de paz. Lá é que trabalha a comunidade fraternal, onde mestre e pai se confundem e onde os trabalhadores são irmãos. E mestre Yukio Kawai, como centenas de outros chefs orientais, diante de um tabernáculo cercado de torres purificadoras feitas de sal, ofertou o peixe e a massa de arroz aos deuses da culinária. Coisa que não vimos, ensopando-nos com a chuva do litoral. É chegada a hora, já secos, de agradecermos com ele o ano cansativo, mas proveitoso, de quem dá aos outros de comer. Agradecermos o calor da cozinha barulhenta, simplesmente por ela ser cozinha e ter um teto. Agradecermos as centenas de aves, vitelas, frangos, alfaces coloridas, cebola, alhos, espinafres, frutas maduras, que se deram, cândidos, a nós. Agradecermos aos cozinheiros, cozinheiras, garçons e garçonetes, fornecedores, amigos, clientes que ajudaram nesse ano a empurrar a muitas vezes emperrada máquina do trabalho. E o obrigado maior à água e ao fogo, à faca e ao garfo, ao peixe e à salsa, à panela e à sua tampa. Texto Anterior: Giggo capricha nos pratos e nos preços Próximo Texto: Russian Tea Room fecha aos 69 anos Índice |
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