São Paulo, sábado, 13 de janeiro de 1996 |
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Brasil trata de esquecer Chico Mendes
ANTONIO CALLADO
A cada ano que passa o Brasil vai perdendo o interesse no líder seringalista assassinado. Estrangeiros publicaram livros sobre Chico, houve filme sobre ele, as Nações Unidas o condecoraram, mas o esforço máximo do Brasil esgotou-se com a descoberta do mandante do assassinato, Darli Alves da Silva, e seu filho Darci Alves Pereira, que teria puxado o gatilho. Condenados pela Justiça a 19 anos de prisão cumpriam pena na Penitenciária Estadual do Acre, em Rio Branco, mas de lá fugiram, em 1993. Por essas alturas o Brasil já tinha perdido o interesse no caso. Estamos todos de acordo em achar que é uma vergonha para o país o assassinato de uma pessoa rara, um modesto seringalista que criou estatura de líder internacional, e a fuga quase arrogante dos seus assassinos. Mas entre achar que uma coisa assim é uma vergonha e de fato fazer alguma coisa para corrigi-la -isso já ultrapassa a nossa energia. Há pouco tempo a televisão brasileira filmou uma fazenda na Bolívia, perto da fronteira com o Brasil, onde agora moram os foragidos Darci e Darli, mas o governo não moveu qualquer palha visível para entrar em contato com o governo boliviano e trazer os assassinos de volta. Aliás, o ministro da Justiça, Nelson Jobim, parece ter horror a qualquer coisa relacionada com mato. Índio nem se fala. Ele foi até um quarup outro dia, no Xingu, mas conseguiu fugir a todos os esforços para lhe colocarem um cocar na cabeça. Quando é fotografado, no seu gabinete, com algum grupo de índios empreendedores, pois lá conseguiram chegar, sua expressão lembra a dos terráqueos de Spielberg ao verem o E.T. do filme pela primeira vez. Agora, cuida o ministro de revogar um decreto nº 22, do presidente Collor, que dava poderes à Funai para criar reservas indígenas. E pergunto: que fim levou o artigo 67 das Disposições Transitórias, que dizia que "a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição", que como se sabe é de 1988, ano do assassinato de Chico Mendes? É curioso mas até, digamos, o golpe de 1964, o Brasil não tinha o tédio que tem agora diante de índio e mato. Em meio às suas maluquices e extravagâncias, o presidente Jânio Quadros, por exemplo, oficializou em 1961 o Parque Indígena do Xingu, trabalho de amor de três irmãos paulistas, Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Boas. Até hoje lá está, funcionando muito bem, o parque, que conheci em 1950 e revisitei há poucos anos. Quem detesta índio acusa uma obra como a do parque de ser uma espécie de "Zoo" de índios para atração de visitantes. O parque atrai turistas, sim, e não vejo que mal há nisso. O parque é o único lugar do Brasil e do mundo em que índios que nunca deixaram de ser índios recebem "civilizados" como o ministro Jobim como se de fato estivessem em casa e lá discutem seus problemas. Se o governo tivesse deixado os Villas fazerem mais dez parques como o do Xingu, estaríamos agora em situação bem melhor para enfrentar a fúria com que os tigres asiáticos, depois de devastarem suas florestas, se dispõem a depilar de mogno a Amazônia inteira. Pelas Guianas entram os asiáticos, ou os madeireiros europeus ou americanos que os representam, e quase não encontram a quem pedir licença para derrubar o que queiram. Segundo o repórter e indigenista Edilson Martins, esses madeireiros já estão chegando ao Acre, depois de capinar o sul do Pará. Quem vai cuidar disso no Brasil onde os próprios índios, corrompidos e abandonados pelos governo, vendem também seu patrimônio vegetal em troca de jipes, fuzis e barcos com motor de popa? A continuarem as coisas como estão, a Amazônia de Rio Branco, de Euclides e de Chico Mendes em breve não nos pertencerá mais. Ela é tarefa chata demais para nossa politiquice, nossa falta de zelo, nossa boa vida de fidalgotes de país de segunda classe. Eu não quero nem me meter em funduras como o destino do Sivam, da Raytheon e do perigo de entregarmos a alguma potência estrangeira o controle da Amazônia. Quero apenas relembrar uma história que anotei como jovem jornalista ao subir o rio Amazonas, de Belém a Manaus, a bordo de um gaiola, ano de 1949. Eu tinha passado alguns anos no estrangeiro e queria conhecer de perto o país. O gaiola era um vaporzinho bem tolerável, e, depois de atravessarmos os deslumbrantes Estreitos de Breves, pescava-se muito bom peixe para a mesa de bordo. Paramos em portos importantes, como a encantadora Santarém na embocadura do verde rio Tapajós, mas também em lugarejos onde havia entregas a fazer ou mercadorias a recolher. Fiz boa amizade com o capitão, que, mal o navio deixava a calha central daquele hipopótamo de massa d'água, se postava ao lado do timoneiro, consultando com atenção um grande mapa do rio, para se prevenir contra os bancos de areia e outros perigos das margens. Um dia, antes de atracarmos num pequeno porto, quase desabitado, que tinha o nome extraordinário de Liverpool, pedi para dar uma olhadela na preciosa carta que detalhava correntes fluviais e insuspeitos igarapés navegáveis. Era todo em inglês. Era do Departamento de Marinha dos Estados Unidos. A questão, portanto, não é bem saber quem vai desvendar os segredos de polichinelo amazônicos, conhecidos há mais de um século por ingleses, franceses, americanos, japoneses. É nos livrarmos da preguiça, do tédio, e garantirmos com nosso trabalho que, contenham o que contiverem, as terras e as águas e o subsolo amazônicos são nossos. É não darmos a nós mesmos, e ao mundo inteiro que nos olha com certo asco, a impressão de que o assassinato de Chico Mendes foi para nós menos uma tragédia do que um alívio: ele nos obrigava a prestar atenção a problemas que envolvem mato, índio, seringalistas. Pode haver coisa mais sem graça? Texto Anterior: Droga pode causar morte Próximo Texto: Cangaço revela fazedor de cabeças cortadas em PE Índice |
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