São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
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Homenagem a Anibal Pinto

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Anibal Pinto, mestre e amigo de tantas gerações de brasileiros, acaba de falecer em Santiago do Chile. Morre com o século, no meio de derrotas e homenagens e, como sempre viveu, cercado do afeto de todos os que tiveram o privilégio de conviver com ele.
Mestre Anibal Pinto deu uma contribuição intelectual ao pensamento latino-americano, que não pode ser traduzida apenas listando as suas próprias obras e as de seus discípulos, que ele ajudou a criar.
Todos os temas relevantes para o entendimento de nossa situação histórica de subdesenvolvimento e os possíveis mecanismos de sua superação foram tratados por ele: heterogeneidade estrutural, inflação e distribuição desigual da renda, como as marcas permanentes de uma situação social fraturada; o financiamento do desenvolvimento e a política, como capacidade e liberdade de atenuar ou agravar o "desequilíbrio tradicional" entre as condições sociais e os dados do desenvolvimento econômico; a incorporação desigual do progresso técnico e a diferenciação da dependência no esquema prebishiano "Centro - Periferia", conduzindo a diferentes estilos de desenvolvimento.
Todos os instrumentos de análise que o modo de pensar histórico-estrutural permite conceber para entender as realidades contraditórias de nossos países periféricos foram utilizados pelo querido mestre.
Sua luta contra as idéias conservadoras prevalecentes no pensamento convencional dos círculos dominantes da América Latina começou cedo. Foi sua a primeira análise crítica sistemática da doutrina do FMI, contida numa breve obra publicada em 1960: "Ni estabilidad ni desarollo: e la Política del Fondo Monetário".
As críticas contundentes à idéia de que o mercado define livremente as vantagens competitivas de um país e à tendência dos economistas ortodoxos de acharem que "o saber econômico" oferece respostas semelhantes às mesmas questões, sem considerar o momento histórico e as condições econômicas, sociais e políticas de cada país, foi uma postura permanente em seus escritos, aulas e conferências.
Foi um apóstolo do entendimento da necessidade de tratar apropriadamente a interação entre economia, política e sociedade, e sua obra constituiu, junto com a de Raul Prebish, Celso Furtado e José Medina Echevarria, um dos pilares do pensamento crítico latino-americano.
Estão vivos hoje vários discípulos de Anibal Pinto, sobreviventes do massacre neoliberal que assola o mundo e as terras latino-americanas. Não posso deixar de destacar Enzo Falletto, no Chile, e Eric Calcagno, na Argentina, que continuaram fiéis às idéias e à luta do mestre.
Sei que prantearam a sua morte, pelo muito que lhe devem, muitos amigos em várias partes do mundo, que seguiram, no entanto, por caminhos distintos. Mas falo hoje apenas pelos brasileiros, onde fez um grande número de discípulos na direção do Centro Cepal-BNDE, de 1960 a 1964.
Creio que os represento a todos, por ter sido neste país, juntamente com Carlos Lessa e Antônio Barros de Castro, uma das suas discípulas mais antigas e fiéis.
Ensinou-nos os fundamentos da economia política e, com a paciência, o entusiasmo e a generosidade que o caracterizavam, guiou os nossos primeiros ensaios sobre economia brasileira. Mais do que isso, ajudou, por meio dos cursos Cepal-BNDE, a formar dezenas de economistas originários das burocracias públicas, da universidade e da política.
Os mais ativos na política de resistência à ditadura acabaram no exílio e vários deles se reencontraram no Chile, onde na Cepal, na Escolatina e na Flacso continuaram desenvolvendo, junto com o mestre, seu pensamento econômico e social em forma mais rigorosa.
Os que ficaram no Brasil criaram vários centros de ensino e pesquisa, o mais notório dos quais foi o Departamento de Economia da Universidade de Campinas.
Como núcleo de resistência e pensamento econômico independente, grupos de economistas da UFRJ, da Universidade Fluminense, continuaram como puderam o seu trabalho.
Nas burocracias, os núcleos mais importantes do pensamento renovador foram os do BNDE, da Sudene e o do Epea.
Na burocracia, quase todos estão hoje aposentados e os poucos que sobraram, fiéis ao velho mestre, continuam lutando contra a maré. Na universidade, o pensamento histórico-estrutural continua sobrevivendo, embora em condições adversas.
Apesar dessa tardia onda de neoliberalismo que avassala o pensamento econômico, ainda são muitos os que continuam lutando. Creio que, por isso, o velho mestre tinha tanto afeto aos brasileiros. Porque aqui a sua obra como professor teve tantos desdobramentos.
Da sensibilidade humana de Anibal Pinto, ao incorporar aos seus discípulos gente jovem e exilada no Chile de toda a América Latina, muitos poderiam dar testemunho.
No Brasil, temos vários casos, mas creio que o mais notável foi o de José Serra que, sendo engenheiro e exilado, iniciou sua carreira como economista, no Chile, sob a proteção intelectual e afetuosa de d. Anibal.
O compromisso intelectual de Anibal Pinto com o continente latino-americano estendeu-se à Península Ibérica, fundando em Madrid a "Pensamento Iberoamericano", uma revista de economia política, que teve a sua apresentação pública em maio de 1982, incluindo artigos em português e em espanhol de muitos pensadores sociais ibero-americanos que se agregaram à sua volta.
Depois da morte de Raul Prebish, Anibal Pinto passou a dirigir a "Revista da Cepal", onde continuou abrigando economistas, sociólogos, politólogos e ensaístas sociais de muitas tendências e de muitos países, desde que contribuíssem para o debate de idéias nesse continente atormentado, em busca de encontrar a sua própria identidade.
D. Anibal sempre foi um mestre, um pensador original, um promotor de encontros entre os cientistas sociais e, por isso, foi devidamente homenageado em muitos países e no seu Chile, que tanto amava, antes de morrer.
Mas do que todos os discípulos que o amávamos sentimos mais falta é de sua figura humana, de sua alegria, de sua generosidade, de sua tolerância e compaixão com a condição humana. Essa é a herança que esperamos manter no coração, qualquer que seja o caminho intelectual e político que tenhamos tomado.

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