São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O espírito de Zumbi

LUÍS NASSIF

Em fins de 94, a posse de Vicentinho na presidência da CUT parecia a muitos o fato político mais relevante do ano. No episódio das câmaras setoriais, Vicentinho havia surgido como um gigante político, rompendo tabús e deixando de lado o medo da negociação.
Foi o primeiro movimento expressivo para romper com a lógica inicial do movimento sindical do ABC. Esse surgira em fins dos anos 70, em cima da retórica da negação. Era-se contra tudo e contra todos -e essa postura era justificável e necessária.
A vida de qualquer segmento social que busca se auto-afirmar politicamente passa por duas etapas, muito semelhantes às que levam da adolescência à maturidade.
Há uma etapa adolescente em que se é barulhento, incômodo, agressivo até. De um lado, para avisar que existe. De outro, para romper com o temor reverencial incutido por décadas de subserviência. Grita-se para espantar o medo.
Conquistado o espaço, superada essa etapa política, ingressa-se na maturidade, onde se trocam demonstrações vazias de auto-afirmação por propostas objetivas.
Exorcismos
Não é tarefa fácil romper com uma etapa e ingressar na outra. Há a necessidade de exorcizar todo o arsenal político utilizado na etapa anterior. A postura pseudomachista do "faço e esbravejo" necessita ser substituída pela postura adulta de negociar e construir.
Quem tem noção mínima sobre esses processos sabe que quanto mais inseguro e despreparado é o líder sindical, mais agressiva e intransigente é sua postura. Só negocia de igual para igual quem conseguiu superar o temor inicial e passou a acreditar no próprio taco.
A negociação pressupõe clareza sobre os objetivos de lado a lado. Entender até onde vão os interesses comuns de ambas as partes não é exercício para mentes canhestras. Pressupõe conhecimento amplo do processo, dos desdobramentos dos pontos que serão negociados. E coragem para superar os riscos de que as mudanças de postura não sejam devidamente compreendidas pelas bases.
Se o líder sindical é uma zebra listrada, a maneira que encontrará para não se expor será radicalizar. Como dizia Paulo Freire, o opressor está na cabeça do oprimido. Grita-se para disfarçar o medo. Radicaliza-se por temor reverencial à parte contrária.
Acostumada aos rompantes das assembléias, parte da base irá considerar o gritão como valente, e o negociador como fraco. E não é tarefa fácil para o negociador explicar a mudança de postura, a não ser quando a base conseguiu evoluir politicamente para entender os novos tempos.
Por tudo isso, o gesto de Vicentinho, de romper com o radicalismo estéril da CUT e do PT e começar a negociar, resgata para o país o grande personagem político surgido no âmbito das câmaras setoriais.
Ressurge, em toda sua grandeza, o negrinho vivo, atrevido, altivo, sentando na grande mesa dos brancos, negociando de igual para igual com o símbolo máximo do poder político nacional -o presidente da República-, sem abrir mão de seus compromissos, sem curvar-se, permitindo à classe trabalhadora participar como personagem ativo da construção do novo Brasil.

Texto Anterior: Hegemonia dos EUA é regra da Nova Ordem
Próximo Texto: Índia é mercado emergente com miséria e tecnologia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.