São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996![]() |
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Com vergonha de ser feliz
GILBERTO DIMENSTEIN Corte 40% do território brasileiro, reduza pela metade sua economia e multiplique por seis a população -essa combinação é o suficiente para transformar o Brasil numa Índia, onde 900 milhões de habitantes repartem US$ 300 bilhões por ano, concentrando o maior número de miseráveis do planeta.Ao ver nas ruas de Nova Déli o resultado humano desta matemática, admito que misturei o choque com a pobreza cinematográfica a um incômodo consolo de quem, algumas horas antes, olhava o Brasil desde a opulência de Nova York. Comparada aos EUA, a indigência brasileira é monumental. Mas, confrontada com a da Índia, ganha um toque de amenidade. Até o ano 2000, eles já terão cruzado a marca de 1 bilhão de habitantes. A cada 18 meses, nasce uma população igual à de São Paulo, 63% dela desnutrida -neste mesmo período, morrem três Brasílias de crianças que não completam cinco anos, vítimas de doenças evitáveis. * Junto com o inútil consolo -inútil porque o desnutrido brasileiro não vai sobreviver por causa da estatística alheia- a Índia revela, em compensação, o tamanho da incompetência brasileira. Apesar de enfrentar obstáculos várias vezes mais duros do que os brasileiros, a Índia exibe maiores avanços sociais. Se a viagem do presidente Fernando Henrique Cardoso transmitir essa lição, já terá valido a pena. * Por causa de seus conflitos, os indianos torram por ano 7% do seu PIB (soma dos produtos e serviços) para manter suas Forças Armadas. O Brasil gasta 0,3%. Tivéssemos a mesma cifra, a conta sairia cerca de US$ 42 bilhões, dez vezes mais do que o projeto Comunidade Solidária. * Os indianos vivem em estado de beligerância com o Paquistão, enfrentam a desconfiança da China, movimentos de independência armados e grupos terroristas. O assassinato de líderes políticos é quase rotina. Uma parte do país é conhecida como território proibido, inacessível aos turistas, onde a pancadaria é diária. * Há uma permanente tensão entre a maioria hindu e a minoria religiosa, ambas repletas de fanáticos. Uma dessas minorias, a muçulmana, tem "apenas" 150 milhões, ou seja, toda a população brasileira. * Para aprofundar as distâncias étnicas, há 17 línguas oficiais e, pelo menos, 2.000 dialetos. Eles têm jornais diários publicados em 96 idiomas, sem contar as revistas ou demais publicações. * Apesar desses obstáculos que o Brasil não imagina em seus piores pesadelos, eles deslancharam o que ficou conhecido como revolução verde, irrigando terras, estimulando o homem do campo, em meio a descobertas genéticas que aumentaram a produtividade. Não por acaso as pesquisas aqui em biotecnologia são avançadas. Resultado: a produção indiana de grãos pulou de 51 milhões de toneladas em 1950 para 182 milhões em 1994. * Sem guerras religiosas, regionais ou de fronteira, apenas com uma língua oficial, se o Brasil tivesse aproveitado seu crescimento econômico e a abundância de verbas externas, dando o mesmo salto na agricultura, teria minado a fome em uma geração. PS - Um dos maiores crimes nacionais foi deixar ao abandono a Embrapa, o mais importante centro brasileiro de descobertas agrícolas. * Trânsito. Um dos sinais da mudança de mentalidade pode ser vista no caótico trânsito de Nova Déli, onde, com frequência, as vacas provocam congestionamento. Para a ojeriza dos mais velhos, os jovens de classe média reclamam do transtorno causado pelos animais. * Perto de Nova Déli, o trânsito de São Paulo é um passeio em dia de domingo. De civilizado, apenas o fato de o motorista, como na Inglaterra, dirigir do lado direito. É um misto de Londres na hora do rush com trem-fantasma. * Um turista que se dispuser a alugar um carro e viajar pela Índia deve prestar atenção não apenas nos homens, mas nos animais. Um conselho dado aos interessados pelos veteranos estrangeiros. De todos os animais, o menos perigoso é o elefante, que, por sua estrutura física, pode amaciar a batida. O camelo é arriscado: por ter pernas compridas, dependendo do choque, despenca em cima do motorista. Grave mesmo é a vaca, animal sagrado que, se atropelado, é capaz de provocar o linchamento do motorista. * É unânime entre os jornalistas e diplomatas que a corrupção contaminou o serviço público de alto a baixo. O presidente Fernando Henrique Cardoso chega à Índia no auge de uma investigação que está cortando a cabeça da cúpula do governo. * Para se ter uma idéia, basta saber que a construtora Odebrecht, personagem de dez entre dez CPIs, não aguentou a "pressão" na Índia. Para seus padrões, aqui era demais. * Além da plasticidade cinematográfica da pobreza, um detalhe me impressionou na Índia: nunca vi em tão pouco tempo tanta beleza feminina. * Mas o estrangeiro deve se limitar ao prazer estético. A moral indiana é tão rigorosa como a muçulmana. A mulher casa virgem, os casamentos são arranjados, a infidelidade é tratada como no interior do Nordeste brasileiro há cinco décadas. * Os indianos só foram ver beijo na tela com a chegada da TV a cabo, em 1990. Fanáticos religiosos promoveram cenas de destruição coletiva de aparelhos, numa demonstração de repulsa a invasão da "sujeira ocidental". * Na onda da liberalização econômica, alguns cinemas puderam passar filmes pornográficos ocidentais. Traduziram para mim os títulos e descobri que aquilo que chamam de pornográfico é o que passa todos os dias na televisão brasileira com acesso livre a qualquer criança. * Foram-se os tempos em que os sábios indianos, muito antes do nascimento de Cristo, estimulavam o êxtase total. A filosofia tantra foi a precursora do estilo drogas, sexo e rock-and-roll, para se alcançar um estágio mais elevado de espiritualidade. A imagem do santo tantra era alguém saboreando bebidas, iguarias, música com uma mulher a seu dispor. * Os primeiros manuais de prazer sexual foram produzidos aqui, servindo como instrumento religioso. Os ingleses se espantaram com os templos, construídos no começo do milênio, com o culto do prazer estampado em nada sutis esculturas e desenhos. Texto Anterior: União de Gaza e Cisjordânia é um dos desafios Próximo Texto: Estado quer tirar governador de residência vice-real na Austrália Índice |
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