São Paulo, quarta-feira, 24 de janeiro de 1996
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Acordo animador sobre uma reforma restrita

DEMIAN FIOCCA

Ao elevar a idade média da aposentadoria e deixar intocada a contribuição sobre a folha de salários, a proposta de reforma da Previdência tende a agravar o problema do desemprego estrutural ou tecnológico (a liberação das vagas tarda mais). Por não cogitar alterações na forma de arrecadação, ademais, a reforma restringe-se a um ajuste atuarial, em vez de redesenhar a seguridade.
Apesar desse conteúdo duvidoso da proposta do Executivo ter sido apenas atenuado na negociação, o fato de o governo e as centrais sindicais sentarem para tratar das mudanças na Previdência tem inegável sabor de país civilizado.
Ao contrário do que sugeria o discurso do governo e de parte da mídia durante a greve dos petroleiros, a mensagem agora é que sindicatos são interlocutores legítimos e devem ser respeitados.
Sem que estivesse programado (e quase surpreendido) o país pode mesmo estar às voltas com algo muito próximo de um pacto social. Outras negociações podem seguir a da Previdência. Assim, os entendimentos liderados pelo ministro Stephanes e pelo sindicalista Vicentinho podem vir a ser um marco do que, se concretizado, terá contribuído para o país deslanchar.
Boa parte da crise inflacionária da década de 80 deveu-se à incapacidade de reequacionar um pacto (implícito, que seja) entre as forças sociais, depois que a derrota do regime militar deu vazão às transformações por que o país passara entre 64 e início dos anos 80.
Trata-se do que em economia costuma-se chamar de conflito distributivo. Para ressaltar esse aspecto, um professor da FEA (Faculdade de Economia e Administração) da USP (Universidade de São Paulo) costumava explicar, com certa ironia, que "a causa da inflação é o PT". Ou seja, a urbanização e a industrialização tinham criado novos setores operários e gerado outras transformações que tornaram obsoletos os padrões de distribuição de renda congelados pelo autoritarismo. Os de baixo exigiam um quinhão maior, e os de cima não cediam.
O déficit público é também uma forma de expressão dessa disputa. As demandas dos vários setores projetam-se sobre o Estado e transbordam se os conflitos de interesse não atingem um termo.
Foi assim que, quando se conquistou a democracia, veio a crise. Não se alcançou um novo equilíbrio aceito pelos vários setores sociais. É esse tipo de pacto implícito que, sendo otimista, pode hoje estar ao alcance.
Podemos levantar hipóteses sobre o que levou cada parte a ter, agora, uma postura mais flexível.
De um lado, a queda da inflação tirou do desespero parte dos setores de mais baixa renda e deu ao trabalhador maior confiança no valor de seu salário. O desemprego enfraqueceu os sindicatos. E a CUT (Central Única dos Trabalhadores) parece ter avaliado que, no tudo ou nada, tinha alta chance de perder. Preferiu salvar uma parte.
Do ponto de vista do governo, a reforma da Previdência é o item mais delicado, que pode servir à oposição para caracterizar o rumo antipopular das reformas. Existem também sinais de que a proximidade das eleições municipais deixa os deputados mais sensíveis aos interesses dos assalariados. A negociação evitou desgaste e o risco de derrota política.
Sem dúvida, o momento seria mais edificante se o acordo visasse a ampliar direitos e proteção social. Mas a mera possibilidade de que o país supere de modo mais duradouro os impasses, e de que os interesses dos trabalhadores sejam legitimados, abre perspectivas para que nação dê um salto qualitativo social e economicamente.
É claro que setores conservadores podem tentar recuar para a velha intransigência quando uma futura negociação propuser avançar socialmente. Não se trata tampouco de ignorar que as injustiças sociais no Brasil continuam brutais.
Mas se o país entrar, num ambiente de cooperação, em um novo ciclo de desenvolvimento, haverá outras oportunidades para redefinir se interesses financeiros ganharão um pouco menos e a classe média terá boa escola gratuita. O reconhecimento de que os sindicatos são sujeitos sociais que têm de ser ouvidos -e de fato eles lograram preservar boa parte dos direitos- foi passo importante na construção de uma sociedade mais moderna.

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