São Paulo, quarta-feira, 24 de janeiro de 1996
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Poucos filmes 'B' dos anos 40 são clássicos

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Era sábado à noite, e liguei a TV com grande expectativa. Ia passar na TV Cultura um clássico do cinema "noir": tratava-se de "Até a Vista, Querida", de Edward Dmytryck, filme de 1944 baseado num romance policial de Raymund Chandler. O ator Dick Powel encarnava o famoso detetive Philip Marlowe. Nada mais cult, nada mais clássico.
A expectativa era tanta que fiquei vendo TV com uma hora de antecedência -essa era também a extensão do meu ócio-, e, por sorte, topei com uma reprise da "Comédia da Vida Privada".
O episódio borbulhava de idéias engraçadas, surpresas e reviravoltas. Assistindo ao filme "Sábado", de Ugo Giorgetti, acreditei que a televisão não conseguiria nunca atingir tal nível de realismo, de veracidade cômica. "Vida Privada" aproxima-se um pouco disso. É raro encontrarmos alguma coisa verdadeira na televisão.
O segredo da série idealizada por Luiz Fernando Veríssimo talvez seja o seguinte: a televisão lida sempre com estereótipos. Pessimamente, nas novelas, quando o clichê é "dramático", envolvendo experiências de vida muito mais complexas, em teoria, do que a mentalidade do autor da novela ou a a mentalidade do público. O estereótipo cômico, entretanto, pode dar bons resultados. O clichê sofre tratamento irônico, recebe uma injeção de exagero.
Só que, nos programas cômicos habituais da rede Globo, há quase que uma culpa no exagero injetado. A explicitude predomina, chegando até à crispação. Humor tão crispado, o de "Casseta e Planeta" por exemplo, que perde completamente a graça. A aposta na comunicação direta se confunde com a aposta na imbecilidade, a corrosão crítica derrapa no preconceito e na sujeira; sutilezas de brontossauro.
Já "Comédia da Vida Privada" usa do estereótipo, mas não se contenta em retratá-lo simplesmente; o estereótipo do casal em crise, da mulher ciumenta, das seduções de um primeiro encontro, não se esgotam em si mesmos; funcionam como ponto de partida para uma historieta desencontrada, esquemática e maluca, na qual se exige do espectador algo mais do que simplesmente dizer "é assim mesmo". Exige-se mais do que o reconhecimento de uma rotina, a repetição de um prato feito, como é tão comum nas novelas e nos quadros humorísticos tradicionais.
Em vez de dizer "ah, é assim mesmo!", o espectador diz: "puxa, não é que é assim mesmo?" Nessa mudança de ênfase, nessa alteração aparentemente tão insignificante, o talento dos atores e do roteirista se afirma de modo inconfundível. A "Comédia da Vida Privada" se torna imperdível.
Mas eu não tinha ligado a TV para assistir a "Comédia da Vida Privada". Estava esperando o clássico do cinema "noir" dirigido por Edward Dmytryck. Queria Chandler e Marlowe.
Minha decepção não podia ser maior. Chegamos a um ponto em que qualquer filme "B" dos anos 40 é automaticamente um clássico. Há "gênios" demais na história do cinema. Há um charme exagerado a envolver as histórias policiais de Raymond Chandler e Dashiell Hammett.
"Até a Vista, Querida", é uma dessas histórias tão enroladas que o detetive não sabe mais se está trabalhando para Fulano ou pra Sicrana; em que o jogo duplo dos personagens se complica tanto, que o espectador simplesmente desiste de participar do que acontece.
O policial clássico, de Conan Doyle ou de Agatha Christie, organizava-se como um enigma matemático. Havia um crime, vários suspeitos, uma investigação. O romance policial americano, de Chandler e Hammett, pôs esse esquema de pernas para o ar. O detetive não sabe sequer o que ele próprio está investigando.
Isso representava um avanço estético, à medida que se cria uma espécie de Kafka de bulevar: O detetive é o perseguido, enrosca-se numa rede acima de sua própria compreensão; tudo se faz por meio do acaso, e se resolve por meio de alguma intuição irracional do protagonista. O mundo aparece nessas histórias como alguma coisa mais hostil, mais obscura, mais traiçoeira do que era nos tempos de Sherlock Holmes e de Poirot. Até aí, tudo bem. Há outro fator de charme nesses romances "noir", que é a ironia do narrador. Sempre há comentários engraçados, extremos de exagero e desencanto. Marlowe é golpeado na nuca. Perde a consciência. Comenta: "eu estava me sentindo bem. Tão bem quanto uma perna amputada". Humphrey Bogart é, como se sabe, o mestre dessas frases a contrapelo.
Só que, à parte esse esquálido humorismo, filmes policiais "noir" dos anos 40 são na verdade, e com raras exceções, chatíssimos de ver. A uma certa altura de "Até a Vista, Querida", perguntei-me qual o interesse, afinal, de saber se o velho Mr. Y tinha escondido o colar de jade para não ser chantageado pela esposa, ou melhor, se a esposa estava fugindo de uma chantagem ao inculpar a enteada de um assassinato, na verdade arquitetada pelo próprio chantagista Z, que procurava Marlowe antes de ser ele próprio assassinado misteriosamente, no exato momento em que Marlowe investigava o paradeiro da corista Y, a qual tivera um caso com um empregado do chantagista.
Ora, francamente, toda a trama é de um tédio insuportável. Ninguém, em sã consciência, há de divertir-se com um filme desses. Muito menos há de considerá-lo um "clássico".
Arrisco uma espécie de conclusão. Acho que estamos todos vitimados pelo que se poderia chamar de uma inércia do gosto. Ou seja, não se gosta de uma coisa porque se gosta, o por qualquer outro melhor motivo; gosta-se das coisas por pura inércia. Explicando melhor: há filmes "noir" que são bons, e de que todo mundo gostou: "Laura", por exemplo. "Casablanca", nem preciso citar.
Passa-se, entretanto, a cultuar o gênero, numa inércia intelectual. Ou seja, se este ou aquele filme B dos anos 40 com trama policial era bom, melhores ainda serão os exemplares menos conhecidos do gênero. Surgem clássicos de quem ninguém ouviu falar, imaginam-se prazeres cinematográficos que na realidade inexistem, em função de uma crendice linguística, de uma superstição vocabular: "o filme B", o "policial noir".
Neste sábado, caíram-me as vendas dos olhos. Edward Dmytryck e companhia não me pegam mais. É claro que o lixo cultural melhora miticamente, 50 anos depois de feito. A precariedade do filme, a incompreensibilidade do roteiro, o sem-sentido de toda aquela agitação de detetives termina ganhando uma aura artística, já que por definição a arte moderna de alta qualidade tem de ser incompreensível, precária, agitada, obscura. Por definição, o público tende a cultuar sem compreender.
Mas esses filmes noir nem sequer tinham a pretensão de serem obscuras obras de arte moderna. Tornaram-se isso, com o passar do tempo, um pouco porque os críticos não sabem exatamente o que cultuar, e também porque o público está disposto a cultuar qualquer coisa. O preto-e-branco da fotografia já impõe respeito. O absurdo da trama tende a criar seu círculo de iniciados e especialistas. O único ensinamento,ento de Philip Marlowe e companhia -tome cuidado para não ser otário- sofre assim sua mais brutal contestação.

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