São Paulo, quinta-feira, 25 de janeiro de 1996
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Uma história de caverna

MOACYR SCLIAR

Tudo começou, moço, quando tivemos de abandonar a nossa casinha lá perto da Serra Grande. Era linda, a casinha. A minha avó gostava tanto dela, que vivia cantando aquela música antiga, "Tu não te lembras da casinha pequenina/ onde o nosso amor nasceu..." Ali morávamos todos, a minha avó, o meu pai, minha mãe, meus cinco irmãos e eu. Por incrível que pareça, tinha lugar para todo o mundo. Mas um dia desabou uma tempestade e a nossa casinha, que ficava no pé do morro, foi arrastada por uma avalanche de terra. Ficamos sem teto.
Aí ouvimos falar do pessoal que morava nas cavernas. Minha mãe não gostou da idéia. Morar em caverna, num lugar escuro, abafado, úmido? Mas a gente não tinha muito o que escolher. Subimos a serra, e começamos procurar uma caverna. Difícil, porque todas já estavam ocupadas: com essa escassez de moradia, o pessoal se enfia em qualquer buraco. Finalmente, achamos uma caverna quase no alto da montanha. A vista era uma maravilha, mas nós estávamos completamente isolados.
E aí a nossa vida começou a mudar. Na casinha a gente tinha até tevê, mas como ligar tevê numa caverna? Com o rádio aconteceu a mesma coisa; quando as pilhas terminaram a gente não podia ouvir mais nada, nem a "Voz do Brasil" que o meu pai gostava tanto.
Quanto terminaram nossas provisões, surgiu o problema: onde arranjar comida? O jeito era caçar. Caça havia na região, mas arma de fogo a gente não tinha. De novo improvisamos: fizemos umas lanças e uns porretes e com isso a gente pegava os bichos e não passava fome.
O problema de verdade surgiu no dia em que terminaram os fósforos. Como é que a gente ia fazer fogo para assar a carne? Mesmo que a gente descesse a serra não resolveria: não tínhamos dinheiro. Meu irmão mais moço disse que a gente podia comer a carne crua. Minha mãe ficou furiosa, disse que aquilo era coisa de bugre, e que nós tínhamos de fazer fogo de qualquer jeito. O meu irmão mais velho, que sempre foi um cara muito jeitoso, pegou umas pedras e disse: eu vou fazer fogo como os índios. E ficou ali, batendo as pedras uma na outra para tirar faísca e acender a lenha. Nós cansamos e fomos dormir.
No meio da noite ele nos acordou, gritando: consegui, consegui! De fato, tinha acendido o fogo, uma fogueira bem grande. Nos sentamos ao redor, e minha avó contou histórias, e nós cuidávamos do fogo, que agora não podia apagar.
No dia seguinte, minha mãe notou que o meu pai estafa ficando peludo. E ele andava de um jeito gozado, como se fosse um orangotango e de vez em quando soltava uns grunhidos. E então eu me lembrei dos homens das cavernas que uma vez vi num filme da tevê. Será que a gente...?
Não sei. O futuro, o senhor sabe, a Deus pertence. A Deus e à caverna.

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