São Paulo, quinta-feira, 25 de janeiro de 1996
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Reforma do Estado e socialismo de párias

FÁBIO WANDERLEY REIS

Marc Blondel, líder da Força Operária da França, declarou no início de dezembro, a propósito do plano governamental que deflagrou a crise no país, que "ficou claro para os franceses que se pretende transferir o custo da proteção social das empresas para os salários".
Essa avaliação encontra ressonância nas análises de estudiosos europeus a respeito das duras realidades da dinâmica neoliberal da atualidade. Fritz Scharpf, por exemplo, resume laboriosos estudos sobre a inviabilização do keynesianismo e as crises recentes das social-democracias européias com a recomendação irônica de um "socialismo numa só classe": dada a necessidade inelutável de assegurar altos retornos aos investimentos e de aprimorar as estratégias produtivas nas novas condições tecnológicas, a redistribuição possível estaria restrita às fileiras dos próprios trabalhadores, com recursos fluindo dos mais bem pagos para os demais.
A única alternativa seria a fatal divisão dos trabalhadores entre "ins" e "outs", estes incluindo os desempregados permanentes, os que só conseguem emprego de tempo parcial, os jovens que nunca se empregam...
O quadro que daí emerge é significativamente complementado pelos dados de pesquisa relativa à crise francesa divulgados pela imprensa brasileira. Eles mostram que avassaladoras maiorias de franceses atribuem responsabilidade decisiva pelos problemas que atormentam o país às elites -políticos, banqueiros, grandes empresários.
No caso brasileiro é provavelmente supérfluo ressaltar a maneira pela qual as novas tendências liberalizantes da dinâmica econômica e seus efeitos excludentes se compõem com velhos fatores de desigualdade social e com a estrutura de castas, em sentido bem real, que herdamos do nosso passado escravista.
A dramática intensificação da violência urbana é a consequência mais gritante dessa combinação perversa, em particular na mais "democrática" de nossas cidades, o Rio de Janeiro, onde riqueza e miséria há muito convivem e se justapõem espacialmente.
Mas vale registrar algo menos óbvio. Analogamente ao que ocorre na França, também entre nós as pesquisas revelam a imagem negativa das elites que prevalece junto à população em geral. A imprensa tem relatado com frequência a desconfiança a respeito das lideranças políticas que os institutos de opinião pública captam em seus levantamentos.
Mas dados recentes de investigação executada por cientistas sociais em São Paulo e Minas trazem revelações talvez mais surpreendentes. Eles mostram que o empresariado e as associações empresariais compartilham com as lideranças políticas as avaliações intensamente negativas da população quanto a sua seriedade e confiabilidade.
Há mais, porém. Em qualquer estrato socioeconômico da população (como os que se expressam em níveis educacionais distintos), a desconfiança com respeito aos empresários é tanto maior quanto mais alto é o nível de informação geral e de sofisticação política das pessoas. Carlos Castello Branco costumava citar Milton Campos e a distinção que este usualmente fazia entre o eleitorado e a opinião pública, a qual incluiria apenas as camadas mais conscientes e atentas dos eleitores.
Os dados em questão deixam claro que o descrédito do empresariado ocorre entre nós sobretudo naquela faixa que merece inequivocamente ser qualificada com propriedade como a opinião pública. O que torna o fenômeno potencialmente mais rico de consequências.
O "ethos" liberal que penetrou a vida política brasileira convive no momento com a intensa exposição pública de formas diversas de generosa intimidade estatal com interesses empresariais e financeiros. Seria talvez de esperar, em certa ótica, que o empenho de reforma do Estado incluísse a preocupação com tais problemas -mas o que vemos é o ministério correspondente expor (seletivamente) à execração pública os nomes de servidores que cumprem as leis (ruins?) que o Estado elaborou. Que pensar da reforma do Estado na perspectiva dos fatos acima assinalados?
Uma ponderação crucial: a constatação de que as novas tendências espontâneas da economia mundial dificultam a ação do Estado (compondo as condições da inviabilização do keynesianismo de que fala Scharpf) não tem por que ser vista como significando que o próprio Estado deva agir de maneira a exacerbar os efeitos dessa dinâmica espontânea, autocerceando-se e eventualmente incapacitando-se de vez para intervir na economia e na sociedade.
Cumpre reconhecer que metas como o equilíbrio fiscal e a superação das gorduras e do ritualismo burocráticos da máquina estatal, apesar de todo o alarido de "reinvenção do governo", são, ao cabo, banais, mesmo que não facilmente realizáveis. O desafio real a demandar soluções inventivas e criativas é o de como combinar a realização dessas metas banais com a implantação do Estado capaz de atender com eficiência aos dramas e carências resultantes da dinâmica econômica espontânea -e que não se limite ao socialismo de párias da proteção social brasileira atual.
Como fazer do Estado, por exemplo, um instrumento efetivo do mutirão educacional que necessitamos?
Claro, pode-se assumir a postura de pretender que, havendo dinamismo econômico, a exclusão social algum dia se corrigirá por si mesma. Mas como conciliar tal postura com o reconhecimento de que os próprios interesses empresariais, e portanto a saúde econômica do país, impõem a necessidade de que o Estado (convicções liberais à parte) continue a administrar o capitalismo, e que daí seguirá fatalmente resultando aquela embaraçosa intimidade?
Faltarão, então, razões para esperar que se dissipe a desconfiança quanto a políticos e empresários em conluio. A que custos?

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