São Paulo, sexta-feira, 26 de janeiro de 1996
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Política lança esconde-esconde ideológico

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Vou ficando um pouco incomodado com o uso de certos termos no atual debate político e ideológico. Acusa-se o governo Fernando Henrique de "neoliberalismo" -e, em contrapartida, seus acusadores são logo acusados de "estatizantes" ou "dirigistas". Não que essas duas posições políticas -neoliberal e estatizante- não existam; o que me incomoda é a presença de uma espécie de esconde-esconde ideológico em torno das palavras.
Qualquer neoliberal, suposto ou verdadeiro, a começar pelo deputado Roberto Campos, apresenta-se sempre preocupado em desfazer os mal-entendidos de que é vítima. Assim, diz que: 1) não é contra o Estado e reconhece seu papel regulador e coercitivo; 2) não acha que o mercado resolve tudo; 3) não é contra os pobres, ao contrário: a dinamização da economia assegura a prosperidade geral, e, além disso, práticas redistributivas e reparadoras estão certamente no programa.
Muito bem. São opiniões sensatas em teoria. Tão sensatas que quem haveria de opor-se a elas? A resposta é imediata: os burocrossauros, os petistóides, os ultra-intervencionistas, todos aqueles que pretendem estatizar, se possível, até a padaria da esquina.
Passa-se a palavra aos acusados; a surpresa é que Lula, Genoino, Brizola, todos fazem o possível para dizer que: 1) não são contra o mercado; 2) não acham que o Estado resolve tudo; 3) não são contra os ricos. Apenas se opõem aos neoliberais, esses privatizantes fanáticos que, se pudessem, transformariam o Palácio do Alvorada em resort para turistas americanos e fechariam todos os hospitais da rede pública.
É difícil encontrar, no mundo real, os fanáticos apontados tanto por um lado quanto pelo outro. Ao contrário, parece haver uma clara disputa pelo centro político; por uma posição equilibrada, em teoria bem distante dos exageros do darwinismo social e do comunismo stalinista.
Pode-se dizer: não, toda essa sensatez e esses inimigos imaginários funcionam apenas na ordem do discurso. Na prática, na discussão concreta das reformas econômicas e sociais, há claramente um campo liberal e um campo estatizante.
Tendo a achar que na prática as coisas se confundem ainda mais. Um partido de origem esquerdista tradicional age instintivamente contra as privatizações, por exemplo. Mas quando uma privatização qualquer é conduzida de forma escusa, tecnicamente suspeita, por que não lhe dedicar a mais ferrenha oposição? Por que os neoliberais mais puros não haveriam de denunciar a negociata?
A pergunta é sem dúvida ingênua. O problema, contudo, não é que as pessoas se digam mais sensatas do que o são na prática, que apresentem um discurso pouco fanático e exerçam um extremo fanatismo na política real.
Minha impressão é que tanto "neoliberais" quanto "estatizantes" se digladiam mais pela inércia de oposições passadas do que pela coloração presente de suas convicções.
Roberto Campos será sempre Roberto Campos aos olhos de um petista, e um petista será sempre um petista aos olhos de Roberto Campos. Digam o que disserem, e façam o que fizerem.
Aliás, suas ações tendem sempre a ser menos radicais do que parecem; a gestão Erundina em São Paulo não terá sufocado, decerto, a livre iniciativa, e a gestão Maluf não é liberalismo puro.
Fala-se sempre da queda do muro de Berlim e das transformações mundiais que tornaram totalmente ultrapassado o discurso ortodoxo de esquerda. Talvez a queda do muro de Berlim tenha sido também uma tragédia para os teóricos conservadores. Vivem do dogmatismo que supõem em seus adversários.
É preciso que a esquerda continue "estatizante" etc., para que o próprio discurso liberal continue a ser feito com vigor. E é preciso que os liberais continuem fanáticos do mercado para que o bom senso continue a ser imaginariamente monopolizado por seus opositores.
Mas a oposição existe, e é improvável que se deva apenas a uma inimizade histórico-pessoal. Talvez se possa especular um pouco sobre qual o conteúdo real do conflito, para além dos rótulos de estatismo e do neoliberalismo.
Sem dúvida, a questão dos direitos adquiridos, dos privilégios e do próprio emprego dos funcionários das estatais está em jogo. Mas quem poderia dizer que pretende privatizar para pôr na rua um vasto contingente de pessoas? Ou que não quer privatizar porque defende os interesses corporativos de sua base política?
Este é contudo um aspecto menor do debate. Há dois problemas concretos envolvidos, o da crise financeira do estado e o da miséria da população.
As propostas "neoliberais" consideram que a diminuição do Estado equilibraria as contas públicas e, a partir daí, ou "depois", o governo haveria de se dedicar melhor a seus fins sociais. Não que esses fins sociais sejam grande coisa; podem aliás ser qualquer coisa -o Sivam, a Transamazônica, o túnel Ayrton Senna não deixam de ser uma obra de "interesse público", embora não seja isso o que uma administração de esquerda entenda pelo termo.
Aqui entramos num ponto que o debate puramente teórico sobre o papel do Estado e do mercado tende a ocultar. Trata-se do que o Estado, uma vez dispondo de recursos, deve efetivamente fazer em termos sociais. Num país como o Brasil, as demandas são imensas -não só os favelados querem ação do Estado. A classe média e o empresariado também exigem mais gastos: tecnologia, museus, aeroportos, por exemplo. Na prática, opções de classe são feitas; em tese, tudo é interesse público. Mas não é fácil aos participantes do debate explicitar claramente suas diferenças quanto a isso.
Outro ponto inconfessável quando se fala de miséria e de crise do Estado, é o dos custos. É possível resolver a miséria brasileira sem uma elevação dramática dos impostos, por exemplo, e de uma consequente mudança no padrão de consumo dos setores mais remediados? Novamente não convém que a classe média fique sabendo dessa conta.
Há também um problema que não é de Estado ou de mercado, mas sim de que tipo de crescimento econômico.
Um país pode entregar-se brilhantemente à produção de automóveis, e pagar alto para ter dispositivos antipoluentes e estradas cada vez mais modernas, num trânsito sempre mais infernal. Pode crescer muito exportando badulaques eletrônicos, sem saber o que fazer da mão-de-obra desempregada.
Mas quando se fala em mudar padrões de consumo e produção, em projetos que absorvam muita mão-de-obra e pouco capital, está se pensando num tipo de sociedade muito diferente dos modelos de "Primeiro Mundo". Nos mais acirrados debates, parece-se estar discutindo apenas a dosagem entre Estado e mercado; e a questão da dosagem vem travestida em mal-entendidos recíprocos.
O debate torna-se em si mesmo conservador, entretanto, quando o tipo de sociedade que se quer construir não é questionado; quando nem mesmo se sabe qual o custo -e para quem- exigido por esse objetivo.

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