São Paulo, sexta-feira, 26 de janeiro de 1996
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Savarin transforma gastronomia em cultura

EITAN ROSENTHAL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jurista renomado, político, inventor, químico, músico, linguista e poeta diletante, foi na condição de gastrônomo que Jean-Anthelme Brillat-Savarin alcançou a imortalidade.
Seu delicioso livro "A Fisiologia do Gosto", tido como um marco da literatura gastronômica, foi publicado pela primeira vez na França em 1825, e desde então vem ganhando sucessivas reedições em todo o mundo. Está sendo reeditado agora no país pela Companhia das Letras (R$ 27; tradução de Paulo Neves).
Seu argumento básico é propor a gastronomia como ciência, em contraponto com os já então comuns livros de receitas culinárias. Gastronomia não virou ciência e sim cultura. Seu livro, recheado de casos e anedotas autobiográficas, encantou e divertiu sucessivas gerações.
Nascido em 1755 em Belley, atual departamento de Ain (França), numa família burguesa, Savarin formou-se advogado e ingressou na vida pública ao ser eleito deputado constituinte em 1789, logo após a vitória da Revolução Francesa.
Em seguida foi eleito prefeito da sua cidade natal. Perseguições políticas o levaram, em 1793, ao exílio na Suíça e nos EUA. Anistiado, retornou à França em 1796 onde, conseguiu um cargo de conselheiro na Corte das Cassações, que exerceu até morrer, em 1826, aos 71 anos.
O serviço público francês da época devia ser tão assíduo quanto o nosso atualmente, pois permitiu que Savarin se dedicasse às ciências, aos inventos, aos textos jurídicos, às caçadas e à sua grande paixão, a gastronomia.
Esta devia lhe demandar bastante, numa época em que o prazer à mesa era proporcional ao tempo de duração da refeição, permitindo-lhe que desenvolvesse suas "reflexões filosóficas", que viraram artigos na imprensa. A partir deles escreveu "A Fisiologia do Gosto", sob o pseudônimo de "Professor".
Em alguns momentos, Savarin nos encanta com a perenidade de suas "reflexões". Como ao tratar de aspectos históricos da gastronomia, repara que os textos clássicos descrevem o apetite gigantesco dos heróis gregos e comilanças formidáveis dos romanos em seus festins, notando como a capacidade estomacal do ser humano declinou até o seu tempo.
Em 1810, época de apetite mais moderado, era normal que seu amigo Laperte, sentindo-se frustrado em seu apetite por ostras, resolvesse comê-las até a saciedade: parou na 32ª dúzia por culpa da empregada inábil em abri-las com presteza e foi obrigado a jantar ainda insatisfeito com a entrada.
O homem público transparece quando Savarin cita as vantagens econômicos da gastronomia e como ela ajudou a tirar a França da falência resultante das Guerras Napoleônicas. As pesadas indenizações foram pagas com a receita das exportações de iguarias que os vitoriosos aprenderam a apreciar durante a invasão, e com os generosos créditos fornecidos por conta da "confiança instintiva que ninguém pode deixar de ter num povo no seio do qual os gastrônomos são felizes".
Em momento algum Savarin admite que se confunda gourmandise com gula ou glutonice. "Gourmandise é uma preferência apaixonada, racional e habitual pelos objetos que agradam ao paladar. Ela é inimiga dos excessos. Todo homem que come até a indigestão ou se embriaga corre o risco de ser cortado da lista dos gastrônomos."
Nas entrelinhas lê-se que a preferência apaixonada do Professor pelos objetos que agradam ao paladar encontra rivalidade na sua predileção pelo sexo oposto. Proibido pela moral da época de se referir explicitamente ao sexo ou ao seu ferramental, Savarin o faz através das trufas, sempre afrodisíacas, das porções restauradoras para exaustos, sempre das atividades amorosas, e explica um sexto sentido para nós desconhecido, o "genésico", que impele os sexos um para o outro e que, "tirânico, invadiu os órgãos de todos os outros sentidos".
Numa das últimas "reflexões" Savarin fala de um novo estabelecimento, o restaurante que "consiste em oferecer ao público um festim sempre pronto, e cujos pratos são servidos em porções a preço fixo, a pedido dos consumidores", uma invenção muito útil por servir a estrangeiros e viajantes, permitir a escolha da hora mais conveniente das refeições e o conhecimento de antemão do seu custo. À luz da história notamos neste contexto a ascensão da burguesia que começava a ter uma preocupação gastronômica, até então privilégio da nobreza, mas não dispunha dos meios necessários à sua elaboração.

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