São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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FHC discute as consequências da globalização

Esta é a íntegra do discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso:

I) Introdução: as diferentes acepções da globalização
É um prazer para mim compartilhar com os presentes algumas reflexões sobre as consequências da globalização. É desnecessário dizer que um tema de tamanha complexidade não pode ser analisado, em todas as suas implicações, numa conferência breve como esta. De qualquer modo, os limites de tempo que tenho de respeitar terão um efeito benéfico: serei conciso e assim concentrarei minha atenção nos tópicos de interesse particular para países em desenvolvimento como Brasil e Índia.
A globalização tornou-se uma espécie de palavra da moda. Muitas vezes dita, mas raramente com o mesmo significado. Trata-se, na verdade, de um daqueles conceitos tão amplos, que é empregado por diferentes pessoas para explicar fatos de natureza completamente diversa. Mesmo quando qualificada como "econômica", a globalização ainda pode ser associada a uma grande variedade de fenômenos.
Possivelmente, a primeira noção que nos vem à mente ao falarmos da globalização econômica é a da sempre crescente expansão dos fluxos financeiros internacionais e de seu impacto sobre as políticas monetária e cambial das economias nacionais. Os efeitos da dimensão financeira da globalização são de certa forma controversos. Se, por um lado, a mobilidade dos fluxos financeiros através das fronteiras nacionais pode ser vista como uma forma eficiente de alocar recursos internacionalmente e de canalizá-los para países emergentes, por outro, a volatilidade dos capitais de curto prazo e a possibilidade de seu uso para ataques especulativos contra moedas são considerados como uma nova forma de ameaça à estabilidade econômica dos países. Noutras palavras, o movimento virtualmente desimpedido de grandes volumes de capitais cria, ao mesmo tempo, oportunidades e riscos.
Outro aspecto é a globalização da produção e a consequente ampliação das correntes internacionais de comércio. No passado, a regra geral era de que todas as fases da produção de uma determinada mercadoria fossem realizadas num mesmo país, e esta mercadoria era então consumida localmente ou exportada. Isso já não corresponde à verdade. Diminuiu o conteúdo nacional da maioria das mercadorias, e fases intermediárias na produção de um bem agora ocorrem em diferentes países. Os produtos finais, especialmente aqueles mais intensivos em tecnologia, dificilmente podem receber o rótulo de serem integralmente feitos ("made in") num só país. Isto é o resultado da interação de várias novas tendências, entre as quais a redução nos custos da mobilidade dos fatores de produção e as economias de escala exigidas por processos produtivos crescentemente sofisticados. O comércio internacional de bens intermediários se faz sobretudo entre unidades industriais da mesma empresa. As corporações frequentemente estruturam suas atividades de modo a atender estratégias de "marketing" e produção destinadas a reforçar sua posição competitiva regional ou global. Os países são selecionados para receber investimentos dessas corporações com base no quadro geral das vantagens comparativas que oferecem.
Isso tem levado a uma acirrada competição entre países -em particular aqueles em desenvolvimento- por investimentos externos. Em contraste com as décadas de 60 e 70, quando julgavam necessário introduzir controles e restrições para disciplinar, em seus mercados, as atividades das transnacionais, os países em desenvolvimento têm reformulado suas políticas comerciais e econômicas, em parte para oferecer um ambiente doméstico atraente para os investimentos externos, os quais se fazem necessários para complementar as suas taxas internas de poupança, geralmente insuficientes.
A globalização também conduz a uma crescente uniformidade do arcabouço institucional e do quadro regulatório em todos os países. Pois, para que possa desenvolver-se a globalização da produção, é preciso que as regras nos diferentes países sejam similares, de modo que não venham a prevalecer, em qualquer país, vantagens "artificiais". Exemplo desta tendência é a introdução, na Organização Mundial de Comércio, de padrões internacionais para os direitos de propriedade intelectual e para as regras de investimento. Temas que, no passado, eram considerados como de competência interna de cada país, estão agora sujeitos a regimes multilaterais de regras. Naturalmente que há limites a essa crescente uniformização de padrões, em razão das próprias diferenças nacionais. E é complexa a interação entre as tendências globais no sentido da homogeneidade e as identidades nacionais.
Finalmente, a globalização econômica está associada a uma revolução nos métodos de produção que resultou numa mudança significativa nas vantagens comparativas das nações. A posição competitiva de um país em relação aos demais é, cada vez mais, determinada pela qualidade de seus recursos humanos, pelo conhecimento, pela ciência e tecnologia aplicadas à produção. Abundância de mão-de-obra e matérias-primas é vantagem comparativa de importância cada vez maior, na medida em que aqueles dois fatores de produção representam parcelas declinantes do valor agregado em praticamente todos os bens. Esta tendência irreversível torna improvável que o êxito dos países do Sul derive exclusivamente da mão-de-obra barata e dos recursos naturais.
II - As consequências da globalização
II.1 - A mudança no papel do Estado
Intimamente vinculada à questão da globalização econômica é a mudança no papel do Estado. A globalização significa que as variáveis externas passaram a ter influência acrescida nas agendas domésticas, reduzindo o espaço disponível para as escolhas nacionais. Já mencionei que os requisitos para a competitividade externa levaram a uma maior homogeneidade nos aspectos institucionais e regulatórios dos Estados, que tais requisitos deixaram menor margem de manobra para estratégias nacionais altamente diferenciadas em relação, entre outros, ao trabalho e à política macroeconômica. O equilíbrio fiscal, por exemplo, tornou-se um novo dogma, conforme bem ilustra o Tratado de Maastricht da União Européia, que fixa parâmetros dentro dos quais devem situar-se os números do equilíbrio orçamentário de seus países membros.
Tanto a opinião pública internacional quanto o comportamento dos mercados também passaram a desempenhar um papel que antes não tinham na redefinição dos limites possíveis de ação para o Estado. A informação movimenta-se livre e rapidamente. Se, por exemplo, circula a notícia de que um determinado país está enfrentando dificuldades para controlar seu déficit orçamentário ou estará proximamente elevando suas taxas de juros, os mercados financeiros internacionais tomam, com fundamento nestas notícias, decisões que poderão ter impacto real no país em questão.
Os países, seus líderes e as políticas por eles adotadas estão sob vigilância próxima e constante da opinião pública internacional. Qualquer medida julgada por estas entidades imateriais como passo em falso pode impor penalidades. Ao contrário, decisões ou eventos interpretados como positivos são recompensados. A opinião pública internacional e, sobretudo, os mercados tendem a ser conservadores, a seguir uma certa ortodoxia em matéria econômica. Estabelecem um padrão de conduta econômica que praticamente não admite desvios num mundo em que há imensa variedade de realidades nacionais. O complexo processo de ajuste não deve ignorar tal diversidade.
A globalização modificou o papel do Estado num outro aspecto. Alterou radicalmente a ênfase da ação governamental, agora dirigida quase exclusivamente para tornar possível às economias nacionais desenvolverem e sustentarem condições estruturais de competitividade em escala global. Isto não significa necessariamente um Estado menor, muito embora este também seja um efeito colateral desejável da mudança de ênfase, mas certamente pede um Estado que intervenha menos e melhor; um Estado que seja capaz de mobilizar seus recursos escassos para atingir prioridades selecionadas, um Estado que possa canalizar seus investimentos para as áreas vitais na melhoria da posição competitiva do país, tais como infra-estrutura e serviços públicos básicos, entre os quais melhor educação e saúde; um Estado que esteja pronto a transferir para mãos privadas empresas melhor administradas por elas; um Estado, finalmente, no qual os funcionários públicos estejam à altura das demandas da coletividade por melhores serviços. E tudo isso tem de ser feito num tempo em que os valores democráticos e uma sociedade civil fortalecida tornam ainda mais amplas as reivindicações de mudança. A transformação do Estado tem também de ser conduzida num quadro econômico de disciplina fiscal e austeridade no gasto público, em que o Estado conta com menos recursos financeiros.
Não se trata de tarefa simples. Requer uma mudança substancial de atitude e determinação para combater interesses velados dentro do aparato estatal. Mas não há alternativa. No caso do Brasil, temos, em suma, de reconstruir o Estado se quisermos ter qualquer possibilidade de êxito na transição do modelo autárquico do passado para outro em que nossa economia se integre plenamente nos fluxos mundiais de comércio e investimento. Pode parecer paradoxal que esta remodelação do Estado de nenhuma forma conflite com idéias tradicionais da esquerda (e orgulho-me de ser fundador e membro do partido que representa a social-democracia no Brasil). Pois é justamente isso o que ocorre. Ao realocar seus recursos e suas prioridades para educação e saúde, num país com os grandes contrastes sociais do Brasil, o novo Estado estará contribuindo para a realização de algo em que ele falhou no passado: promover maior igualdade de oportunidades numa época em que a qualificação e a educação constituem pré-requisito não apenas para a conquista de um posto de trabalho, mas também para aumentar o grau de mobilidade social no país.
Hoje, mais do que nunca, metas caras à esquerda podem ser alcançadas junto com e em virtude de nossos esforços para aumentarmos as capacidades nacionais com vistas à participação competitiva na economia mundial. Além disso, este Estado remodelado precisa ser ainda mais forte no desempenho de suas tarefas sociais e melhor preparado para regulamentar as atividades recentemente privatizadas. As dificuldades no processo de transição do papel do Estado são sentidas em toda parte e não podem ser subestimadas. A reforma da Previdência Social na França e as difíceis negociações para a aprovação do orçamento nos Estados Unidos são exemplos dos obstáculos a serem superados pelos governos, basicamente porque não há respostas imediatas e evidentes ao desafio da transição. Abandonar as práticas tradicionais do Estado do Bem-Estar não implica deixar de lado a necessidade de melhores padrões de vida para os nossos povos.
II.2. Algumas considerações políticas sobre a globalização
De tudo o que disse até o momento, pode-se ficar com a impressão de que o processo de globalização responderia apenas às forças de mercado. Da perspectiva tanto da alocação de recursos quanto das decisões relativas ao investimento produtivo, o mercado e, de fato, o fator decisivo. Mas devemos evitar o erro de tirar desse fato conclusões equivocadas. A primeira dessas possíveis conclusões equivocadas seria considerar que a globalização, vista como resultante unicamente das forças de mercado, esgotaria o debate sobre a questão. Isto não é verdade. Os contornos dentro dos quais o mercado atua são definidos politicamente. O jogo de poder entre as nações não está ausente, assim como não o está a possibilidade de cooperação econômica definida por governos. As negociações de comércio exterior ainda são conduzidas por meio do diálogo entre Estados em foros por eles criados, em particular as que dizem respeito à definição das regras que balizam a competição.
O poder econômico é um fator determinante nestas negociações, bem como na solução de disputas comerciais bilaterais. Em alguns casos, as potências econômicas invocam sua influência para desrespeitar as regras multilaterais por elas próprias propostas. A questão dos subsídios à agricultura ilustra este ponto. Por outro lado, os movimentos recentes de criação de processos de integração regional, a que os anos 90 têm assistido, são também iniciativas com as quais os governos tentam influenciar a direção da globalização econômica. A segunda conclusão perigosa que devemos evitar seria transformar o mercado numa forma de ideologia, segundo a qual tudo o que estivesse a favor das forças de mercado fosse visto como bom, positivo, fator do desenvolvimento, ao passo que seria esta como negativa qualquer decisão política destinada a moldar as forças da competição.
É justamente o reconhecimento de que há "limites" ao mercado que permite a nós, países em desenvolvimento, atuarmos politicamente na defesa de nossos interesses nacionais. No entanto, as formas de atuação, de regular o processo de globalização, variam entre os diferentes países em desenvolvimento. Queiramos ou não, a globalização econômica é uma nova ordem internacional. Precisamos aceitar este fato com sentido de realismo; do contrário nossas ações estarão destituídas de qualquer impacto efetivo. Isto não significa inércia política, mas uma perspectiva inteiramente nova sobre as formas de agir na cena internacional.
Precisamos também reconhecer nossas diferenças. O Sul não pode ser considerado como uma entidade única. A globalização acelerou e aprofundou a diferenciação entre os países em desenvolvimento em termos de sua capacidade de tirar proveito dos fluxos internacionais de investimento e comércio.
Quando escrevi meus livros sobre a teoria da dependência, a hipótese era a de que o processo internacional do capitalismo condicionava negativamente o desenvolvimento. Não o impedia, mas o tornava injusto e desequilibrado. Para muitos, os modelos econômicos autárquicos eram uma possível forma de defesa contra uma integração internacional considerada arriscada e perigosa. Esta visão mudou. Temos de admitir que a participação na economia global pode ser positiva, que o sistema internacional não é necessariamente hostil. Mas, para aproveitar as oportunidades, é preciso ir com cuidado. O sucesso da integração na economia global depende, de um lado, da articulação diplomática e da construção de parcerias comerciais adequadas e de outro, da realização de reformas internas em cada país em desenvolvimento, democraticamente conduzidas.
II.3 - Globalização e a questão da inclusão e exclusão
Gostaria agora de passar ao exame de outra consequência da globalização: a questão da exclusão e inclusão social. E minha primeira observação é a de que a globalização está dando origem a uma nova divisão internacional. Os pontos cardeais já não explicam de forma satisfatória o mundo. As divisões Leste-Oeste e Norte-Sul eram conceitos que minha geração empregou para lidar respectivamente com a realidade política da Guerra Fria e com o desafio econômico do subdesenvolvimento. A situação internacional desta metade da década de 90 é muito mais complexa. O mundo pode ser dividido entre as regiões ou países que participam do processo de globalização e usufruem seus frutos e aqueles que não participam. Os primeiros estão geralmente associados à idéia de progresso, riqueza, melhores condições de vida; os demais, à exclusão, marginalização, miséria.
É certo que a globalização produziu uma janela de oportunidades para que mais países pudessem ingressar nas principais correntes da economia mundial. Os tigres asiáticos e mesmo o Japão são exemplos significativos. Estes países souberam aproveitar as oportunidades dadas pela economia mundial através da adoção de um conjunto de políticas que incluem, entre outros, o desenvolvimento de uma força de trabalho bem treinada e qualificada, aumento substancial da taxa de poupança doméstica, e implementação de modelos voltados para a exportação e baseados na intervenção estatal seletiva em alguns setores.
Para outros países em desenvolvimento mais complexos, entre os quais o Brasil e a Índia, a integração na economia global está sendo feita à custa de maior esforço de ajuste interno e numa época de competição internacional mais acirrada. Nossos avanços são conhecidos, e não tenho dúvidas de que nesses dois países estão tendo êxito em gradualmente colher os frutos dos laços econômicos mais profundos que estão estabelecendo com o resto do mundo. O mesmo acredito será válido para as chamadas economias em transição dos antigos países comunistas, que, não obstante, estão pagando um preço alto pelo ajuste aos princípios da economia de mercado impostos pela realidade atual.
Para os países menores e mais atrasados, prevalece, porém, um grande ponto de interrogação. Serão eles capazes de algum dia poder superar os desafios da globalização? Estão seus povos condenados por uma lógica perversa a viver na pobreza absoluta, a ver suas instituições ruírem e a depender da ajuda externa num mundo menos predisposto a oferecê-la e mal preparado para canalizá-la de modo eficiente? Reconheço que as dificuldades a serem enfrentadas por esses países são enormes. No entanto, recuso-me a aceitar que seu destino esteja predeterminado ao fracasso, como se nada pudesse ser feito, como se a comunidade internacional pudesse conviver confortavelmente com a indiferença e a paralisia em relação aos países mais pobres. A marginalização perverte a boa consciência da humanidade.
A marginalização, todavia, não está confinada unicamente aos países ainda não integrados na economia internacional. Ela também está crescendo nos próprios países prósperos. A globalização significa competição com base em maiores níveis de produtividade, ou seja, maior produção por unidade de trabalho. O desemprego resulta assim dos mesmos motivos que levam uma economia a ser competitiva. A situação é particularmente grave na Europa. Os que são demitidos nos países ricos podem recorrer a mecanismos de proteção social de diferentes tipos: alguns poderão ser treinados para um trabalho substituto. Mas pouco poderá fazer-se para aliviar a frustração dos jovens que querem ingressar no mercado de trabalho e não conseguem. A falta de esperança, o consumo de drogas e álcool, o desmembramento da família são alguns dos problemas trazidos pelo desemprego e pela consequente marginalização. Há um sentimento de exclusão, de mal-estar em vastos segmentos das sociedades ricas integradas na economia global, alimentando a violência e, em alguns casos, atitudes de xenofobia.
Como lidar com a complexa questão do desemprego é um desafio com o qual se defrontam praticamente todos os países que participam da economia global. A resposta a ele certamente não deve ser encontrada numa reação à globalização, seja mediante um fechamento da economia ao comércio com parceiros externos, o que apenas grava a marginalização de um país, seja mediante o estabelecimento de regras muito rígidas nas relações de trabalho, passo que corre o risco de, em vez de estimular, dificultar a criação de empregos.
Apesar de que dificilmente se poderia considerar a criação de empregos uma responsabilidade direta dos governos, estes dispõem de uma ampla gama de possibilidades de ação para atacar o problema. A primeira e talvez mais importante medida é a promoção do crescimento econômico sustentado, através da adoção de políticas corretas. A segunda seria promover programas dos órgãos oficiais e do setor privado que sejam destinados ao retreinamento dos trabalhadores dispensados por setores nos quais já não conseguem encontrar um posto de trabalho. Um terceiro passo seria tornar mais flexível o conjunto de regras relativas às relações de trabalho, de modo a preservar o número de empregos. Esta flexibilização deveria possibilitar, por exemplo, que empresas e trabalhadores negociassem livremente um leque tão vasto quanto possível de tópicos, tais como o número de horas de trabalho e de dias de férias, a forma de pagamento das horas-extras etc. Deveria também resultar em menores custos para a contratação de trabalhadores. Por fim, há alguns instrumentos à disposição do governo que podem ser atrelados à expansão da oferta de empregos, tais como a concessão de créditos pelos bancos estatais e a inclusão de incentivos na legislação tributária.
Em países de grande população como o Brasil e a Índia, deve-se também ter sempre presentes, ao pensar-se a questão da geração de empregos, as formas de funcionamento da chamada economia informal. Em que medida a economia informal reduz empregos na economia formal e em que medida oferece postos de trabalho adicionais? Um melhor conhecimento destas questões é necessário para que possamos tirar as conclusões corretas e adotar as medidas apropriadas.
3. - Conclusão. O campo para a atuação internacional. A ética da solidariedade.
Permitam-me agora concluir com alguns breves comentários sobre o que pode ser feito pela comunidade internacional para lidar com os efeitos negativos da globalização econômica, fenômeno que está aqui para ficar e que influenciará nossas opções nacionais no futuro previsível. Como disse, a globalização gerou a exclusão dos países pobres que ainda não compartilham os benefícios do processo. Criou também marginalização nos países ricos e naqueles em desenvolvimento que se encontram integrados na economia mundial. Mas a globalização também multiplicou a riqueza, desencadeando forças produtivas numa escala sem precedentes. Devemos renunciar aos elementos positivos da globalização, às possibilidades de maior riqueza por ela oferecidas, e reverter o relógio da história, supondo que seja possível fazê-lo? A resposta a esta indagação é seguramente negativa.
Como, então, podem atuar os governos e chefes de Estado para atenuar os dolorosos efeitos colaterais da marginalização numa época em que se modificou e de certa forma se contraiu o papel do Estado? Assim como os Estados podem reduzir seus desequilíbrio sociais internamente, também é possível imaginar um grupo de Estados que seja capaz de propor alternativas para aliviar as consequências sociais da globalização. Não é tarefa simples. Sabemos que os problemas de hoje são de natureza global, como a volatilidade dos capitais mundiais, o tráfico de drogas, a proteção do meio-ambiente, as migrações, etc.
O desafio reside em completarmos a transição da etapa do reconhecimento de que os problemas são globais para outra fase mais adiantada, na qual estejam criados os instrumentos concretos e estabelecida a mobilização para a mudança. Sem ter a pretensão de oferecer uma resposta completa a este desafio, parece-me que um bom começo deveria partir do reconhecimento de que as propostas de mudanças devam preencher quatro condições: a) a primeira é de que as propostas de mudança sejam universais, que possam, pela negociação, encontrar alguma forma de consenso nos interesses dos Estados, pobres e ricos, em desenvolvimento e desenvolvidos; b) a segunda condição é de que todas as propostas sejam viáveis, que não sejam irrealistas nem ingênuas, que não exacerbem rivalidades; c) a terceira é de que as propostas sejam capazes de mobilizar aqueles Estados e outros atores que contém com efetivo peso para influenciar o processo de negociação; d) e a quarta condição é a de que as propostas incorporem um conteúdo ético que as torne capazes de se situar acima de mística do mercado e do jogo de poder.
É chegado o tempo de tentarmos reintroduzir a ética da solidariedade nas formas de atuação do Estado e, através delas, no conjunto da sociedade. Os governos não podem fazer tudo, nem as lideranças mundiais. Não obstante, em razão do papel que desempenham, do exemplo que podem dar, os governos e seus líderes podem ser catalisadores da mudança, trazendo de volta valores éticos numa época que parece ser deles carente.
No plano internacional, a ética da solidariedade pode levar a novas utopias, ainda que mais modestas, para preencher o vácuo ideológico deixado pelo colapso das grande utopias do passado. A ética da solidariedade deveria inscrever na agenda internacional o tema da cooperação internacional para o desenvolvimento, agora dentro de uma nova perspectiva, que possa combater a indiferença em relação à marginalização, à exclusão, à fome e à doença, problemas que estão na raiz das questões das migrações e da violência no mundo todo.
No plano interno de cada um de nossos países, a ética da solidariedade deverá estar a serviço da formação de novas modalidades de parceria entre a sociedade e o governo: deverá auxiliar, através da educação, a sociedade a organizar-se, de modo que ela se torne mais autônoma e menos dependente de governos que têm menos recursos; deverá dar maior importância ao desenvolvimento da comunidade e à construção da nação, da cidadania. Cidadãos e elites precisam exercer sua responsabilidade social se quisermos viver num mundo melhor. Termino aqui meus comentários, ciente de que, apesar de diferentes pela história e geografia, a Índia e o Brasil compartilham problemas e desafios semelhantes. Hoje, toquei em alguns deles. Trataremos de enfrentá-los a partir de perspectivas distintas, mas buscando os mesmos resultados: lutar pela prosperidade mundial, melhorar os padrões de vida de nossos povos e reduzir a marginalização de suas camadas mais pobres. Desejo apenas que a Índia e o Brasil tenham êxito. E que no futuro estejam unidos, trabalhando juntos.

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