São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Libertas quae sera tamen

ROBERTO CAMPOS

"Curar a moléstia britânica com o socialismo é como usar sanguessugas para curar leucemia."
(Margaret Thatcher)

Fernando Henrique Cardoso tem razão em rechaçar a acusação de neoliberalismo que lhe assacam as esquerdas burras. Seu governo se intitula "neosocial", neologismo intrigante com cheiro de nostalgia dirigista. Em entrevista recente com o professor Alain Touraine, propugna "formas de controle social mais diretas". Mas ao mesmo reconhece as "deficiências de um país burocrático estatal". Como sua trombeta soa um som incerto, começa a haver confusão no campo de batalha...
A verdade é que a economia brasileira está anos-luz distante do liberalismo (novo ou velho). Isso é uma percepção empírica (e cotidiana) de quem tem que se haver com as complicações dos sistemas fiscal da legislação trabalhista, dos controles de câmbio, dos serviços públicos geridos por estatais. Mas faltavam análises internacionais comparativas sobre os graus de liberdade.
Essa brecha foi preenchida em estudo de três economistas, J. Gwartney, R. Lawson, e W. Block -Economic Freedom of the World: 1975-1995- preparado sob os auspícios da Universidade da Flórida. Trata-se de uma exaustiva análise das correlações entre grau de liberdade interna e desempenho econômico em 102 países, de diferentes ideologias e em variados graus de desenvolvimento.
Essa pesquisa levou em conta uma variedade de critérios quantitativos, sopesados por um amplo número de especialistas dos mais qualificados do mundo. As questões teóricas que se levantam são das mais estimulantes. É obviamente difícil quantificar as variáveis que definem "liberdade", desde a relativamente simples proporção dos gastos públicos sobre o PIB, proteção à propriedade privada, possibilidade de movimentação de capitais e produtos, barreiras ao comércio internacional, carga fiscal sobre o indivíduo e a empresa, e outras várias formas pelas quais o governo se mete na vida das pessoas. O enfoque adotado, no caso, foi o dos pesos relativos atribuídos a cada variável por uma boa média da opinião de especialistas.
Uma análise até certo ponto convergente fora feita, em 1979, pelo Atlaseco, do respeitado "Le Nouvel Observateur", que classificou os países em quatro categorias de renda per capita e liberdades políticas individuais (1978). Os métodos empregados neste trabalho foram bem menos sofisticados do que os do "Liberdade Econômica". O ano de referência está já bastante distante no tempo; a estrutura econômica era bem diversa da atual; os dados sobre liberdade referem-se a quatro níveis de liberdade política, conforme classificação da Amnesty International -fonte mais impressionística do que técnica, e a correlação (119 países) teve de ser calculada por nós.
O interessante, porém é que se encontram uma correlação direta entre liberdade e renda per capita. Nessa classificação, o Brasil está no segundo quartil da liberdade, e no terceiro da renda individual, e acima, havia pelo menos 53 países nas categorias de liberdade, mas apenas 23 nas de maior renda individual.
No estudo de Gwartney, Lawson e Block, adivinhem só onde ficou o Brasil? No 94º lugar entre 102 países! Isso mesmo! Mais intervencionistas (ou menos liberais que nós) só oito países -Burundi, Costa do Marfim, Romênia, Haiti, Síria, Irã, Argélia e Zaire... No outro extremo, os campeões libertários são Hong Kong, Cingapura, Nova Zelândia, Estados Unidos e Suíça.
Surpreendentemente, países tido por "dirigistas", como Japão (10º lugar), Coréia do Sul (12º), Taiwan (16º) estão mais próximos que nós do liberalismo econômico. Perdemos até para economias ex-comunistas como a República Tcheca, Polônia e Hungria, que estão rapidamente abandonando o centralismo dirigista.
O que é especialmente interessante -e coincide bastante bem com aquilo que a teoria econômica levaria a esperar- é que existe uma elevada correlação positiva entre liberdade econômica e desempenho, tanto em termos de renda per capita quanto de taxas de crescimento. Quanto maior o índice de liberdade, mais ricos os países em 1994, e mais elevado o ritmo de crescimento no período 80-94.
Naturalmente, como observa o respeitado "Economist", esse notável trabalho, apesar do rigor metodológico e da clareza das conclusões, não vai encerrar para todo o sempre o debate sobre liberdade e desempenho econômico, quando mais não seja porque "correlações" não são o mesmo que "causas", e porque sempre haverá certa margem de confusão entre as categorias de liberdades "políticas" e "econômicas".
Não se trata, portanto, de chegar a conclusões categóricas, de caráter absoluto, sobre "Estado", "grau de liberdade econômica", e "desempenho econômico". No universo das sociedades humanas, os resultados são sempre expressos como tendências e probabilidades. Mas as correlações encontradas são das mais robustas, e a originalidade do estudo casa-se muito bem com a seriedade técnica. Os resultados não surpreendem porque, no caso, a análise teórica segue num sentido paralelo à percepção intuitiva da maioria das pessoas. Não há quem não reclame do "custo Brasil", oriundo do excesso da regulamentação e extração fiscal.
Por que mais liberdade econômica está diretamente correlacionada com mais eficiência? Pelo simples motivo de que quando o governo entra para decidir o que é melhor, são os políticos e burocratas que tiram e gastam o dinheiro da gente. Como esse dinheiro não "dói", não passa de "verbas", de cifras abstratas numa folha de papel oficial, eles vão tratar de ser eficientes naquilo que "lhes" interessa de verdade: votos, cargos, poder, promoção, carreira, mulherio, família, cupinchada.
Além disso, reduzem-se os incentivos à criatividade individual e ao vigor empresarial. Extrapole isso, leitor, e terá a explicação do porquê as economias socialistas afundaram, porquê os regimes estatizantes dos países menos desenvolvidos fracassaram todos, porquê o Brasil, com sua vasta estrutura "soviética" de empresas estatais, acabou estagnando na década passada, depois de ter sido um dos países que mais cresceram no mundo.
Naturalmente, há sempre quem lucre com isso. Cada vez que a imprensa levanta a questão dos salários dos "marajás", estes se arrepiam todos, afirmando que o que ganham não chega nem longe de tudo o que merecem. As nossas "novas classes" corporativas, muito parecidas com a "nomenklatura" socialista, revestem seus privilégios com fachadas de "nacionalismo", "preocupações sociais", e "objetivos estratégicos".
Nada como abrir os olhos para a realidade. Pelo menos, que fique claro que liberdade também vale dinheiro. Para chegar à bomba atômica, os socialistas tiveram de engolir a física de Einstein, que achavam "burguesa" e "judaica". Depois, para subirem uns degraus na prosperidade, arquivaram o socialismo, e preferiram a liberdade. E nós, da turma verde-e-amarela?

Texto Anterior: Demografia da crise
Próximo Texto: Governo criou fórum para apoiar Vicentinho
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.