São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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A revolução em marcha

MARCIO AURELIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando nos propomos a refletir sobre teatro, automaticamente somos levados pela tradição a pensar primeiro no texto. Embora Müller tenha uma proposta que seja extremamente cênica, hoje o que nos resta é o seu legado.
Nesse sentido, sempre vamos encontrar diferentes aspectos na abordagem de seu texto dramático, queiramos ou não. Dos verdadeiros homens de teatro sempre acabamos encontrando, via de regra, uma contribuição especial na formulação de seu projeto estético. Fatalmente se acoplará à dramaturgia uma teoria do teatro que o transforma ou o transformará ao longo do tempo.
O teatro de Müller, por exemplo, é altamente comprometido com este fazer. Ao contatarmos seus textos, percebemos que são todos estruturados a partir da abordagem dos clássicos, sejam autores ou temas. Certa ocasião, dizia que estava muito interessado em Shakespeare, mais do que em Brecht, naquele momento, mas que este transformava Shakespeare, que o transformava, ou seja, um ao outro, dialeticamente.
É o que acontece com Müller hoje. É a idéia de material que está em jogo, como já estava em Brecht. Seu texto, "Usar Brecht Sem Criticá-lo É Traição" (1) mostra isso. Perante sua obra sabemos, a priori, que não estamos frente a uma concepção fechada do teatro, mas diante de uma visão absolutamente renovadora de outros materiais reutilizados e recolocados como possibilidades para um novo processamento poético.
Sabia, entretanto, da complexidade que envolve essa proposta. Ele chegava a admitir que alguns de seus textos destinavam-se muito mais a cursos de artes cênicas do que ao teatro de repertório. Sabia da importância do treinamento dos criadores dentro de outra dinâmica que não aquela já estabelecida, visando a atingir determinados resultados, pois nem sempre viria a alcançar sucesso dentro dessa nova abordagem do fazer teatral.
O aprendizado de outra estética, dentro dessa perspectiva, redunda fatalmente em novo produto. Tanto o texto escolhido para a montagem como os coletados de outros autores ou ainda os escritos/reescritos por ele, visando à transformação em "texto espetacular", no sentido de De Marinis (2), são catalizadores energéticos absolutamente estimulantes para qualquer núcleo de criação artística. Os manipuladores de seu texto encontrarão à frente muito mais uma alavanca para a remoção do mascaramento de situações e fatos do que aquilo que seria normalmente proporcionado pelas rubricas e formas tradicionais da organização do discurso cênico, que, na maioria das vezes, soterram o seu real sentido, amarrando os criadores a uma estrutura falida e fortalecendo a estagnação e a morte do teatro.
Agrava-se nessa prática a falta de perspectiva histórica que, inevitavelmente, acabará por achatar o discurso da peça.
Antes de nossa apresentação de "Hamletmachine", a que Müller teve a oportunidade de assistir no Masp (Museu de Arte de São Paulo) em 1988, ele dizia que jamais tinha imaginado seu material trabalhado em cena por um único intérprete, embora já o tivesse pensado até com 200 ou 300 atores. Após o espetáculo, dizia-se tão tocado que não tinha palavras e, para um autor, não ter palavras para se expressar era uma coisa grave. Além disso, sugeria que fizéssemos a encenação de um outro texto seu, que ainda não conseguimos realizar -"Descrição de Imagem"-, embora não tenhamos abandonado a idéia do projeto. Quem teve a oportunidade de ver o espetáculo, jamais se esquecerá de Marilena Ansaldi em cena, preenchendo com grandeza as várias facetas do universo proposto pelo autor. Era modelar a maneira como assumia o texto em primeira pessoa para reforçar todas as suas contradições.
"Somente posso imaginar a prosa escrita em primeira pessoa. Quando escrevemos peças, dispomos de máscaras e papéis através dos quais se pode falar. É por isso que prefiro o teatro. Por causa das máscaras. Posso dizer uma coisa e dizer o seu contrário." (3)
Buscamos o texto de Müller como material para discutir exatamente, naquele momento, a questão da estética vigente e o isolamento do indivíduo nessa busca do fazer poético. Em outro texto, faz considerações sobre esse assunto:
"A individualidade somente existe onde o homem se contrapõe à solidão. (...) A proposta capitalista constrói-se basicamente a partir do medo da solidão. O McDonalds é a oferta absoluta de coletividade. Senta-se em qualquer parte do mundo no mesmo bar, come-se a mesma merda e todos são felizes, porque no McDonalds eles formam um coletivo. (...) O comunismo joga o homem perante a solidão. Diante do espelho, o comunismo não tem nada a oferecer. Esta é sua superioridade: o indivíduo é reduzido à sua própria existência". (4)
A experiência do "Hamletmachine" era a exposição do indivíduo debatendo-se na busca de uma expressividade, provocando uma troca de papéis em que o coletivo -público- também fosse tirado da posição de mero observador passivo a que estava relegado. Disso resulta o verdadeiro fenômeno cênico, em que, pelo terror do desconhecido à sua frente, eram todos recolocados em um estado ativo por diferentes elementos, numa perspectiva diferente daquela amofinadora do cotidiano coletivo, da estabilização e da burrice.
Isso era mostrado cenicamente no momento em que, ao invés de seguirmos sua indicação no texto -o ator rasgando a foto do autor enquanto fala-, Marilena acendia uma vela, vinha até o limite da boca de cena, girava mecanicamente a manivela de uma caixinha de música, da qual se ouvia o "Parabéns a Você", e dizia:
"Na solidão dos aeroportos Eu respiro aliviado. Eu sou um privilegiado. O meu nojo É um privilégio... Meus pensamentos são chagas em meu cérebro. O meu cérebro é uma cicatriz. Eu quero ser uma máquina. Braços para agarrar, pernas para andar, ou seja: nenhuma dor, nenhum pensamento". (5)
Tínhamos em cena o intérprete -Eu autoral/atoral- diante do que se convencionou chamar de "poética da representação" de seu tempo a base da questão hamletiana em Shakespeare, que agora aparecia relativizada pelo "EU", que não sabe atuar dentro do jogo político de seu tempo.
"O meu lugar, caso o meu drama se tivesse realizado, seria dos dois lados da frente, entre as frentes, acima delas. (...) O meu drama não teve lugar. O texto perdeu-se. Os atores penduraram seus rostos nos cabides do camarim. Na platéia, os cadáveres de doentes de peste empalhados não mexem mão alguma." (6)
O mais interessante era acompanhar Müller durante a apresentação de espetáculo cujo texto fosse de sua autoria. Sabia de cor os seus textos, e quem o conheceu de perto sabe disso. Parecia um Nelson Rodrigues, articulando-os juntamente com os intérpretes durante a performance. Não por curujice de autor, mas por outro motivo, que o qualificava, a saber: não é a toa que sugere e muitas vezes indica que o mesmo texto seja dito e redito por personagens diferentes, ou por coros, nas mais diferentes situações, relativizando-os dentro de nova estrutura ou condição. A própria inversão já propõe uma outra concepção do drama, comédia ou tragédia. O discurso pronto, uma vez rearticulado, serve, dentro da sociedade industrializada, como desconstrução de seu próprio merchandising: veja-se o caso Benetton. Assim, aponta em "Diálogo com Wolfgang Heise":
"Mesmo no amor, o espanto faz parte do jogo. O elemento do teatro é a metamorfose.(...) Quando o espanto se petrifica, o teatro deixa de existir". (7)
Em todas as demais oportunidades que tivemos de trabalhar com seus textos, "Eras", "Filoctetes", "Horácio", "Mauser", "A Missão" ou, utilizando-os indiretamente durante os ensaios de "Ricardo 2º", de Shakespeare, "Peça Coração", ou outros em que podemos reencontrá-lo, como na reutilização e releitura de trechos de "Vênus e Adonis" ou no poema "A Violação de Lucrécia", ambos de Shakespeare, cuja encenação estamos trabalhando com a Companhia Razões Inversas, ficou-nos claro ser impossível não reconhecer a forte presença de Müller como pensador e articulador estimulante do fenômeno teatral, colocando-nos em constante renovação.

NOTAS
1. Heiner Müller, in "Teatro na Alemanha, 1960-1984", uma exposição do Instituto Goethe no Brasil.
2. Marco De Marinis, "Lo Spettacolo Come Testo" (Versus, Bologna, 1978/79).
3. Heiner Müller, "Muros". Trad. José Galisi Filho.
4. Heiner Müller, "Pensar é Fundamentalmente Culposo". Trad. José Galisi Filho.
5. Heiner Müller, "Hamletmachime". Trad. Reinaldo Mestrinel.
6. Heiner Müller, op. cit.
7. "Diálogo Entre Heiner Müller e Wolfganf Heise". Trad. José Galisi Filho.

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