São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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Um homem raro

ANTONIO CANDIDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

João Luiz Lafetá tinha qualidades raras. Era discreto e caloroso, reservado e cordial, cumpridor estrito do dever, capaz de concentrar-se a fundo nas tarefas, procurando sempre produzir o melhor. Como professor, era inigualável, desde a presença serena até a voz admiravelmente impostada, que lhe permitia falar em tom normal e ser ouvido no fundo dos anfiteatros. Sem contar o essencial, isto é, a capacidade de expor a matéria de modo perfeito e seguro, depois de ter preparado a aula com aplicação quase angustiada, como quem duvida de si e por isso se julga moralmente obrigado a fornecer o melhor. E de fato fornecia, na aula, na palestra, no ensaio, no livro -manifestando em cada uma dessas atividades a sua grande e polida inteligência.
A sua contribuição aos estudos críticos é muito importante, sobretudo pela argúcia das análises e interpretações. Não era dado à pesquisa propriamente dita, porque lhe interessava sobretudo a descoberta pela leitura, que sabia fazer de maneira criadora. O seu livro sobre a crítica dos anos de 1930 definiu de maneira original o movimento que, na literatura contemporânea do Brasil, deu lugar à passagem do "projeto estético" dos anos 20 ao "projeto ideológico" dos anos 30, ponto de vista que se incorporou ao nosso cânon crítico.
Além dessa capacidade de ver claro nos movimentos literários, possuía em alto grau a de descobrir relações ocultas e desvendar o significado de textos complexos, nem sempre bem apreendidos por leituras menos argutas. É o caso, por exemplo, do estudo magistral sobre "São Bernardo", de Graciliano Ramos, no qual revelou que um capítulo considerado meio solto por vários críticos (inclusive eu), tem de fato uma funcionalidade decisiva na economia do livro.
E eis que no auge da atividade, pronto para os estudos certamente mais amadurecidos de sua carreira, ele nos deixa, depois de ter passado pela vida com o pudor altivo de quem não cultiva o brilho, não faz questão de aparecer e tem o sentimento das coisas que na verdade contam. Uma pena, como raramente se vê outra igual.

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