São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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Da exatidão misteriosíssima do ser

DAVI ARRIGUCCI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Certa vez imaginei que João Luiz Lafetá escrevia como andava: leveza, graça aérea, incisiva exatidão. Sua prosa tendia à sobriedade do bico de pena e se casava perfeitamente ao recorte de perfis, à sutileza do traço analítico, ao contorno das sínteses históricas. É que parecia mover-se, sem quebra da postura hierática, sobre um invisível monociclo que pedalava, delicado e preciso, com miúda tenacidade, sempre no rumo certo.
Não me dera conta de que essa imagem de sonho já o punha à distância, preparado para a partida, perdendo-se, tão jovem ainda, na direção da clareza impossível que parecia atrair seu espírito apolíneo. Adivinhar diante do hermético é tarefa de Apolo, e debruçar-se sobre o escuro da noite, à procura do pássaro amarelo, como no "Rito do Irmão Pequeno", era uma vocação para ele, leitor de Mário de Andrade; decifrar imagens noturnas, viajar na noite. Com prudência mineira, Lafetá estava preparado. Na literatura, na vida social e na política, ele via claro onde outros nada viam -era esta a força e a finura de seu espírito crítico, que fascinava a quantos o escutavam ou liam- e queria ver mais em si mesmo, enredando-se em labirintos inextricáveis. Levou os últimos anos enredado, até que à beira da morte, em meio ao desconcerto e a tanta dor, voltou à luz antiga e disse, com límpida serenidade, que já era tempo de partir, que já havia andado a maior parte do caminho, que afinal tudo fizera para ser feliz.
Esse homem tão fino e discreto tinha a paixão das tensões dramáticas, dos grandes desgarramentos e dos conflitos interiores, mas em face deles se mantinha calmo e contido, ardente e frio, querendo entender. Não é à toa que sua visão crítica se fixou em imagens e momentos históricos de dilaceramento. Assim, nas tensões entre o projeto estético da vanguarda modernista e o projeto ideológico que as mudanças históricas trouxeram nos anos 30. Ou em Mário de Andrade, que, múltiplo e contraditório, encarnava tudo o que o desafiava: os homens partidos em tempos de vida partida; as imagens herméticas de uma alma escusa e a consciência aberta à expansão e à participação; irreconciliáveis inclinações entre a autonomia e a função social da arte. Por ver claro em meio ao turbilhão, Lafetá foi também um extraordinário orientador de seus alunos, harmonizando como poucos as tarefas do professor com as do crítico e do historiador da literatura. E, por isso, sua breve existência, desejosa de nitidez, foi das mais produtivas e marcou com seu brilho a vida de todos nós: "Só um desejo de nitidez ampara o mundo...".
Decerto custa muito a um país tão pobre como o nosso perder uma figura como a dele. Não teremos mais o grande livro sobre Graciliano Ramos, que estava prometido desde o admirável ensaio sobre "São Bernardo", "O Mundo à Revelia". Nem é preciso insistir nas afinidades que o ligavam ao modo de ser do velho Graça, à sua busca de equilíbrio entre o psicológico e o social. Muitas outras coisas não teremos, e dele nos habituamos a esperar somente o melhor. Para os que acham que a crítica é de todas as matérias inventadas pelo homem a mais improdutiva, não vale a pena argumentar; para os que pensam, ao contrário, que nela reside uma faculdade central de nosso espírito e uma condição de toda liberdade humana, a história é outra. Para estes, João Luiz Lafetá será sempre exemplo e inspiração, diante do mais difícil: com a mesma dignidade que soube viver e ensinou a morrer.

NOTA
1. O título deste artigo é um verso do poema "Rito do Irmão Pequeno, VI", de Mário de Andrade

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